O QUE É LIXO PARA UNS, É LUXO PARA OUTROS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 

Minha casa foi plantada por um construtor que entendia da trajetória do sol. A qualquer hora do dia, ela está sempre inundada de luz. Mas é pela manhã, quando a luz se torna mais diáfana,  que eu me sento em qualquer cantinho, e vejo a vida sem a morte. Fica tudo de uma compreensão eterna. Um prêmio que me transporta ao mais profundo estado de existir sem dor. Olho, então, para as paredes e verifico, um a um, se os quadros estão alinhados: porque um quadro torto poderia botar a perder esse momentâneo arrebatamento. Que dura minutos, mas que me abastece por algumas horas. Depois, tudo volta a ser como é: estranhamente perigoso.  Mas enquanto não é, desfruto. 
 
Desfruto, por exemplo a existência pacífica da mesinha redonda, que estrategicamente posicionei ao lado do sofá redondo, de oncinha – sou brega, adoro oncinhas-. E me comovo ainda mais: porque essa mesinha foi catada do lixo.
 
Uma bela manhã, acordei e quase não acreditei: minha vizinha, esposa de um rico esculápio ( procure no dicionário se não souber o que isso significa, porque tenho que usar esse artifício para não identificar a vizinha de cara), pois a minha vizinha, jogou fora essa mesa redondinha, que deve ter-lhe servido redondamente,  durante muitos anos. E eu, favelada que sou, atravessei a rua, de pijama mesmo, e me abracei com ela, e com ela atravessei a rua, dizendo-lhe com amor de mãe: “ filha, você agora é minha.”
 
Dei-lhe lugar de honra na sala principal da casa. Que não é “a de visitas” mas é a minha sala. Aonde eu me sento, para aspirar em largos haustos a normalidade tão sonhada.
 
A mesinha de rattan ( olha que chic) é o símbolo da minha evolução histórica. Eu nunca me imaginei capaz de assumir publicamente que reviro o lixo dos outros.  Pois assumo: sou capaz de revirar o lixo dos outros e levar para casa o que me interessa. Assumo! Eu já tenho esse direito. Conquistei outros também, mas hoje, essa mesinha fez aniversário aqui em casa, e por isso dedico a ela o direito de existir placidamente em minha sala, enquanto eu exerço heroicamente o direito de declarar que reviro o lixo alheio. E que tenho vocação para revirar lixo, e de lá extrair tesouros.
 
Todo mundo deveria revirar lixo para dar uma segunda chance àquilo que não é lixo, àquilo que pensaram que fosse, mas não era. Assim é a vida: uns só enxergam lixo onde outros enxergam encanto, estilo e beleza. Questão tão instintiva quanto meditativa, que uma coisa puxa a outra.
 
 Então vamos agora para a parte meditativa. Que nada mais tem a ver com a vizinha, tem a ver com a mesinha.
 
Começa assim: a mesinha agora é minha! Que ninguém venha reivindicar a  antiga posse. Porque o ser humano  joga no lixo o que não quer, e quando descobre que alguém ousou querer aquilo ele não quis,  fica tomado de uma ira indefectível.  Seja falando mal do que jogou fora, seja falando mal daquele que resgatou aquilo que foi jogado fora. O negócio é falar mal. Porque falando mal, procura sentir-se menos mal aquele que jogou fora, o que não deveria ter jogado fora. Uma mesa redonda pode virar um puff... e puft o que era lixo vira luxo. Uma mesa alta de canto, pode virar uma mesa baixa de centro, basta cortar as pernas. Melhor cortar as pernas, se as pernas da mesa lhe escandalizar, do que permitir que a mesa toda seja jogada no monturo. Outro lixo virando luxo.
 
Eu também frequento brechós. Já comprei um trono africano, todo estrapeado, mas com vocação para bunda de rei. Ou de rainha.  Revesti de veludo negro, e depois descobri que em minha casa não havia lugar para mais um trono. Dei o trono para o meu irmão, mas quem usa é minha cunhada. Problema dele. Estamos na parte meditativa e não na parte fofocativa. Continuemos.   
 
“Assim é a vida” e “Agora é tarde”. Entre essas duas frases um intervalo para reflexão.
 
Comecemos com “Assim é a vida”: existem circunstâncias nas quais somos tentados a jogar fora o que é apenas a representação do nosso próprio tédio.   Uma olhada mais profunda revelaria que o tédio é seu e não do outro. Ninguém nasce para fazer o outro feliz, cada um  tem a obrigação de fazer-se feliz. E buscar em Deus a própria felicidade.
 
Preste atenção, baby.
 
Preste atenção, baby, para que outros não lhe digam: “Agora é tarde, baby.” Outra mulher, outro homem já estão escrevendo o happy end que você deixou pelo meio. Seja a história da mesinha que foi jogada no lixo, seja a história do amor que foi sacrificado como peru de véspera. E que outra está saboreando e lambendo os beiços.  

O que é lixo para uns, é luxo para outros.
Por isso, eu cato lixo. Ivo foi catado do lixo, mas ainda era solteiro. Outra bobeou, jogou fora esse tesouro, e eu catei: é meu, não devolvo, não vendo, não troco, não dou. Naquele tempo, fiz isso com certo pudor, mas com firmeza. E não deu outra: ela quis de volta.  Uma carta  na véspera de argolarmos o dedo, confirmou a tese milenar. Mas o que já era meu, continuou sendo meu, com a concessão de Deus. 

 Quem mandou jogar fora? Agora é tarde, baby.
 

Como vocês podem ver, só hoje assumi publicamente a minha vocação, mas ela é  antiga.   Bem antiga.