SE O MEU FUSKA FALASSE.
ANA MARIA RIBAS.
Andam abusando do direito de escrever no painel traseiro de carrinhos e carrões.
Abusam tanto, que eu me divirto tanto. Ou me aborreço muitíssimo.
Quando avisto de longe, um carro, com uma fraseologia ambulante, acelero para chegar mais perto: - “fala carro, que eu lhe escuto como um ser falante.” Que você não é, mas convencionaram que fosse.
ANA MARIA RIBAS.
Andam abusando do direito de escrever no painel traseiro de carrinhos e carrões.
Abusam tanto, que eu me divirto tanto. Ou me aborreço muitíssimo.
Quando avisto de longe, um carro, com uma fraseologia ambulante, acelero para chegar mais perto: - “fala carro, que eu lhe escuto como um ser falante.” Que você não é, mas convencionaram que fosse.
E os carros, esses dizem coisas que os seus donos gostariam de dizer, mas não encontraram espaço em outro lugar. Gente que ainda não entrou na era do www. Tão fácil: um clic e tem-se um blog circulando na WEB. E com ele o direito de dizer o que se sabe, o que se pensa, o que se quer. Mas existe ser movente que ainda prefere o vidro traseiro do carro: uma resumição só.
Dia após dia, mês após mês, ano após ano, há gente dizendo a mesma coisa, e há gente lendo a mesma coisa. Com uma desvantagem: lemos e não podemos opinar, compartilhar ou discordar. Fiquei mais de ano, com um vizinho confirmando, todos os dias, que “batatinha quando nasce esparrama pelo chão” e a batatinha nunca cresceu e nunca parou de esparramar-se, até o dia em que ele mudou-se daqui e foi esparramar batatas em outro arraial. Singelo, não?
Mas há situações mais graves. Por exemplo: o que significa um adesivo com os dizeres: “Propriedade exclusiva do Senhor Jesus.” Significa que o Senhor Jesus é o dono do carro, ou é o dono da vida de quem possui o carro?
Se fôr da vida, seria melhor escrever no coração. Se fôr do carro, a coerência exigiria que se entregasse a chave, para toda e qualquer pessoa, que do veículo, necessitasse. Um vizinho doente - sem carro para se locomover até o hospital? Poderia usar esse - que é propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Um mendigo cansado, carregando seus trapos em direção ao sul? Teria todo o direito de pedir que o levassem até a cidade mais próxima, utilizando-se da propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Simples assim.
Porque é isso que faria Jesus. Onde já se viu Jesus negando a um discípulo precisado, o direito ao uso do seu jumentinho, se jumentinho Ele tivesse possuído? Não possuiu. Para a entrada triunfal em Jerusalém, tomou um emprestado, e o devolveu, depois, ao verdadeiro dono.
Andam abusando do direito de escrever sobre Jesus no painel traseiro de carrinhos e carrões. Uma frase muito em moda: “Deus é fiel”. Essa é a escolha de nove entre dez modelos de carros novos. Como se a fidelidade de Jesus dependesse da conta bancária do cidadão que pôde adquirir a máquina. E com tal, sub-entende-se que aquele que só pôde comprar um Uno velhinho, não pôde contar com a fidelidade de Jesus. Que essa é prerrogativa de quem tem modelos mais modernos e sofisticados.
A fraseologia dos religiosos, deixa-me com suor nas axilas, tão agitada me torno. Fico como se tivesse cumprido o percurso da São Silvestre, mil vezes, com a língua de fora, sem olhar para trás. Meu Deus, para onde irei eu, tendo que guardar comigo o que penso, nesse pensar que é meu próprio, e que é tão solitário? Para:
www.anamariaribasbernardelli.com
Felizmente, temos também a fraseologia dos apenas humanos. Esses não misturam alhos com bugalhos. Só por isso, já contam com a minha compreensão. Um exemplo: “ Eu amo meu marido.” Ou “Eu amo minha mulher.”
Posso compreender, mas não posso deixar de comentar: olha só que patetice! Pois se a sujeita tem um homem como marido, e se esse marido a tem como mulher, seria por algum outro motivo que não o amor? O que mais deveria unir um homem e uma mulher: a conta bancária? os filhos? o comodismo? afinal, por quais motivos um ser humano precisa sair por aí anunciando que ama o parceiro, se isso deveria ser o óbvio ululante? Talvez porque não seja.
Outro dia, eu reconheci um homem inocente e puro, pela fraseologia do seu carro. As letras bordadas no painel diziam o seguinte: “ A FORÇA DA TUA INVEJA É A VELOCIDADE DO MEU SUCESSO.”
Esse foi curioso. Olhem os detalhes: ele viajava a 60 km por hora, e o carro estava usando toda a força dos seu cavalos de força: era um fusquinha hum mil novecentos e bolinha, caindo aos pedaços.
Mas enquanto os pedaços não caiam, o homem puro passeava com a mulher e os filhos, todos puramente assentadinhos e espremidinhos, como sardinhas em lata. Eu passei por eles, com a minha máquina, e enxerguei, só no banco traseiro, quatro pares de olhinhos que descobriam o mundo em alta velocidade. Contando mais dois, nos bancos da frente, temos seis: seis pessoas que me pareciam haver acabado de adquirir o direito de locomover-se, como se estivessem ao redor da mesa da cozinha: sentados. A paisagem apenas passando, em slow motion, e a emoção mais acelerada do que o motor daquele que, um dia, fora chamado de carro.
Esse tão puro do qual lhes falo, morador da roça que era, usava chapéu. E o vizinho dele, só tem uma carroça e é invejoso. Então, já se sabe a lógica da frase escolhida: “a força da tua inveja, é a velocidade do meu sucesso.”
Fácil de ler, digerir e engolir: “Vai seu Zé, ser sucesso na vida com a força da inveja do seu Mané.”
Fácil de ler, digerir e engolir: “Vai seu Zé, ser sucesso na vida com a força da inveja do seu Mané.”
Cheguei em casa, e escrevi a frase no mural de avisos, para não esquecer. Porque ali me nasceu essa crônica. Quatro dias depois, finalmente, Ivo, distraído como ele só, ou ocupado como sempre foi, veio perguntar o que significava aquilo que estava escrito em nosso mural de recados. E que me fazia rir, toda vez que passava por ali.
Nada não, Ivo. Significa apenas isso: Se eu fosse adepta do fraseologismo ambulante, as frases do meu carro diriam assim:
1- Propriedade exclusiva minha, porque comprei com o dinheiro do Ivo.
2- Deus é fiel com carrão, com carrinho, com carroça, com bicicleta, ou a pé.
3- Se eu amo, ou não amo meu marido, é problema meu. Cuide do seu.
4- Sua inveja, não me fede, nem me cheira: pode invejar à vontade.
Mas isso é porque sou revolucionária, reacionária, sublevadora, retrógada e porque não acompanho a modernidade dos meus pares.
Faz parte do chamado de mulher das cavernas. Das cavernas de Elias.
* Foto produzida pelo Alemão. Obrigada, alemão.
* Foto produzida pelo Alemão. Obrigada, alemão.