PIMENTA NÃO É REFRESCO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Estou lançando oficialmente a campanha: “Pimenta não é Refresco.” E se quero conquistar adeptos,  tenho que me dedicar a uma viva reflexão, cuja fim seja fazer dos  humanos, seres menos humanos e mais divinos.

 Haverá um dia em que pimenta seja refresco, não sendo aquele tradicional “no zóio dos otro”? Pois quando eu vinha descendo a rua, veio-me o sentimento. Sentimento! Eu penso sentimento, como um princípio de resolução. Sou extremamente simpática e acolhedora com os meus  sentimentos. Com os bons. Embora já saiba, que neste mundo há somente um Único que é bom.    

 O desafio imenso de hoje: fazer com que a pimenta seja refresco em nossos próprios olhos. Impossível! Isso exigiria de mim a consciência cósmica de um iluminado. E eu, eu que só tenho a minha própria, não posso lançar-me, salomônicamente,  a esse desafio, apenas descendo a rua, e olhando o mundo à minha volta. Mesmo com grandes olhos de espanto, que é a minha marca registrada de olhar e ver. 

 Eu entendo a pimenta como uma situação extremamente ruim, a qual os seres humanos evitam a todo custo para si, e não se importam, nem um pouco, quando acontece com o outro. Com o outro pode.  Não é assim? Mas isso é o princípio da maldade! Meu Deus, acabei de descobrir o princípio da maldade! Toda maldade tem por base essa premissa. E diante de tantas modulações de maldade que direi eu?

 A última da qual eu soube, pelas manchetes, deixou-me tão aflita: “ pai e madrasta, matam dois filhos adolescentes e esquartejam os corpos.” Antes, porém, torturaram os dois meninos, a ponto de fazê-los registrar em uma carta, o desejo de habitar  um mundo menos ruim. Um mundo onde pimenta no “zóio dos otro” não fosse refresco.

 Penso nesses meninos, e me pergunto: Senhor meu Deus, como podemos prosseguir, indiferentes, sendo humanos? Eu sei que não sou apenas humana,  sou filha do Deus vivo, feita à imagem e semelhança de Deus. Mas o que fazemos nós, os filhos do Deus vivo, com a sua imagem e semelhança,  quando nos confrontamos com o que fazem os filhos do capeta, à sua imagem e semelhança ( do capeta)?

  Não fazemos nada! Nem guardamos mais a capacidade da indignação, do choro, dos lamentos e  dos ais.  Mas guardamos intacta a letra da última música de Adriana Calcanhoto.

 A vida segue e nós seguimos  sendo apenas humanos.

 Com igual tristeza, constato, que  nem preciso ligar a televisão para perceber que a humanidade continua preparando diariamente, para os outros seres humanos, a sua poção infernal apimentadíssima.  E que ela atinge toda a criatura, humana ou não. Por isso é que a Bíblia diz: “ toda criação geme e chora aguardando o dia da redenção.”

 Senão, vejamos: estou na academia, fazendo o meu sacrifício de cada dia. Não fui lá para ver, mas, de repente, ver se tornou inevitável: dentro do páteo,  vejo um velhote maldoso espancando  o cavalo manco que lhe puxa a carroça. A carroça vem carregada de achas de lenha para aquecer a piscina térmica. As achas pesam toneladas. E o cavalo mal aguenta sem arriar. Pois esse velho tinhoso,  ao qual devoto o mais profundo desprezo, joga pimenta nos olhos do cavalo quando lhe oferece quarenta chibatadas no lombo, ignorando o esforço que o cavalo faz.

 Eu odeio a maldade que esse homem comete, e fui falar com ele. De nada adiantaram os meus argumentos, se ele tem o dele. E o argumento dele é assim: “ dona, a a vida do meu cavalo, é melhor do que a minha.” E passou a desfiar sobre mim um rosário de lamentações, enquanto o animal, arriando, esperava que o velho lhe tirasse,  dos costados, as achas de lenha.

Logo percebi que a pimenta do velho asqueroso se voltara contra mim, como uma baba grossa. Daquelas quiabentas. Todas as vezes que ele me avista, surra o animal. Ele gostaria de me surrar, aburguesada que sou para os padrões da sua  miséria, mas como não pode,  a pimenta nos olhos do animal vai lhe servindo de refresco.

  Eu poderia comprar esse animal, mas o que faria com ele, na sala da minha casa? Não posso trocar o Ivo por um cavalo manco!  E o que faria com os outros cavalos? E os outros? E mais os outros?

 Nessas horas, sinto que se instalou uma tristeza milenar dentro de mim e que essa tristeza queria ter um milésimo de poder: poder esganar o velho, poder libertar o cavalo, e poder  instaurar o novo céu e a nova terra, prometidos por Deus para nós,  aonde o leão e a áspide brincarão com o desmamado de peito, e nenhum mal se lhes fará.

 E por falar em fazer, eu me pergunto, ainda que não seja da minha conta, eu mal me pergunto: o que fará Deus, com aqueles  que  exercitam, a cada dia, uma  forma nova de praticar a maldade, como se isso fosse apenas uma manobra de surf?

 Pratica-se, o mal por esporte e, pensa-se que não haverá o dia de um juízo?   

O que  fará Deus com os que desmatam a Amazônia, sem ouvir o gemido das árvores?

 O que  fará Deus com os que nada fazem a respeito do que não lhes diz respeito? Como esses que convivem pacificamente, com a maldade do vizinho, e tem por ela uma tolerância próxima de um princípio religioso ou social: “eu cuido da minha vida e ele cuida da dele.” O que Deus fará?

 Eu não aguento esperar pelo que Deus fará amanhã.  Eu falo hoje, eu choro hoje, eu berro hoje, eu esperneio hoje, eu me meto aonde não sou chamada, hoje, ontem, e amanhã, enquanto vida tiver.

 Mas o mundo precisa de muito mais pessoas para engrossar o batalhão dos que se rebelam contra toda “liberdade” arbitrária, arrogante e bárbara.  Mesmo que isso signifique encrenca com o pai, com a mãe, com os irmãos, com a família, com os vizinhos, com os políticos, com o sistema, com o mundo. Que gente ruim há em todas as camadas sociais, nas melhores e nas piores famílias: Ninguém está livre da desgraça de abrigar uma cobra no seio. Mas Deus pode nos livrar. E que Ele nos livre então das cobras que ainda não nasceram.

Contra estes filhotes do demônio que já estão em circulação pelo mundo, só há uma solução: unamo-nos contra eles. Vamos todos aderir à campanha do “Pimenta não é Refresco”

 Não se gasta quase nada, aderindo à ela: Só a vida toda.