Nativity in black

Amanhece e uma notícia macabra corre pela cidade. No início da noite anterior, um bebê veio ao mundo, mas é declarado morto pelo obstetra. Poucas horas depois, durante o velório, mergulhados em profundo pesar e no frio silêncio da madrugada, ouve-se o choro do bebê vindo de dentro do caixão.

Ao longo do dia, o terror e o desconforto dessa história bizarra alastraram-se de tal maneira que no telejornal do meio-dia, da emissora de maior audiência, a manchete teve destaque entre outras tantas mortes. Durante a tarde, nas repartições públicas, nas empresas, bares, esquinas, em todos os cantos, não se falava de outra coisa: o bebê não fora simplesmente enterrado vivo, mas fora enterrado vivo com a ciência dos médicos e enfermeiros que atenderam a mãezinha à hora do parto.

Cai sobre a cidade a escuridão incômoda de uma noite úmida e fria. Nos lares, e novamente nos noticiários televisivos, o relato acrescido de todas as certezas colhidas durante o dia: houve testemunhas de que a criança suspirava enquanto preparavam-na para deitá-la no minúsculo esquife. E que mexeu as perninhas quando tentaram reanimá-la pela segunda vez. E até teria chorado novamente durante o enterro.

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O caso do bebê aconteceu de verdade. Para falar com sinceridade, as histórias que contaram em Canela sobre a criança ter chorado no próprio velório ocorreram mesmo. É impossível não se sensibilizar com um caso assim: não só pelo sofrimento dos pais da criança, de uma moça e um rapaz que acabaram de perder o bebê, mas pelo repúdio e a revolta da população contra o hospital e os médicos que atenderam este caso. O problema é que até o final daquele dia, das vinte e quatro horas seguintes aos fatos acontecidos, essa revolta era baseada na boataria. Queria-se pôr o hospital abaixo sem dar um direito de defesa aos outros envolvidos.

Não entro no mérito de quem teria começado. Talvez o cadaverzinho jamais tenha-se movido, ou suspirado, ou chorado como dizem. Mas alguém julgou ter percebido, e da vaga impressão à certeza absoluta está o espaço de um boato. E, se há nesse boato um elemento repulsivo, bizarro, medonho, aí está o fermento para nascer uma crença. A realidade nasce, não do conhecimento, mas da crença.