PARECE MAS NÃO É.
ANA MARIA RIBAS.

Parece que a vida não se move. Parece que esse é mais um sábado entre milhões de outros, embora neste, especificamente, uma chuvinha insistente esteja caindo lá fora, e fazendo tudo de um cinza ainda mais monótono. Parece que somos criaturas milenares, que nos movemos em círculos de uma extrema amplidão. Mas em círculos. É lícito dizer assim: “amanhece o dia em Corinto, em São Paulo, em Nova York, em Americana, em Atenas.” Não é preciso que as mulheres e os homens do Brasil se mirem no exemplo daquelas mulheres e daqueles homens de Atenas. Podemos nos mirar no próprio espelho, e escolher imitar hoje a pessoa que fomos ontem.

 Parece que a vida não se move. Mas a imagem no espelho já se moveu. Segundo uma teoria científica, que não tive a boa vontade de guardar, somos hoje uma cópia daquilo que fomos ontem, fisicamente falando. Mas nem precisamos dessa teoria para saber disso: basta uma olhadela implacável no espelho. Os que já passaram dos “enta” anos, saberão que, a cada dia, a fotocópia está mais comprometida, e nem temos a quem reclamar pela má qualidade.

 As linhas e borrões na fotocópia são culpa do foto sol. O sol que traz vida para a natureza, vai marcando a sua trajetória em nossas caras. Estragando a obra prima de Deus. Esse é o preço que ele nos cobra por tamanha fidelidade. Quanto mais se exige do seu bronze, mais ele cobra pela exigência.

Eu sempre fui branquinha e sempre gostei de ser branquinha. Lagartear ao sol nunca foi o meu negócio. Mas mesmo assim, a qualidade da cópia de hoje,  já não me agrada. Os textos do meu rosto estão perdendo a nitidez exatamente naquelas partes mais interessantes de serem lidas. Eu tinha, por exemplo grandes olhos abertos para o mundo,  como os faróis da Avenida Paulista. Hoje eles são apenas espantados. Eu tinha os contornos da mandíbula bem demarcados, como as curvas da estrada de Santos: já não tenho. Não, da forma irretocável, como os tinha.

 Eu tinha e eu tenho. A vida é feita desses dois opostos que se opõem. O que eu tenho por fora é diferente do que eu tinha por fora. Em compensação, o que eu tinha por dentro também é diferente do que eu tenho por dentro. Que se não fosse, já seria desgraceira por demais. 

 
Parece que a vida não se move. Mas assim como o universo está em expansão, estamos nós, em permanente estado de movimentação: as células de fora e as células de dentro.

 A máquina pode estar apresentando alguns sinais de debilidade, que, não sabemos, ocupados que estamos com tudo o que é visível.

Um dia, eu ouvi um homem dizer, com a felicidade estampada na cara boa e gorda: “ o doutor disse que eu posso ir pescar no Mato Grosso, que eu tenho no mínimo, mais dez anos de vida.” Ele tinha 80 e na semana seguinte estava morto.

 Parece que a vida não se move, mas estamos viajando a cento e sete mil quilômetros por hora, na espaçonave terra. E a cada dia, corremos um grande risco: o risco de viver.

 Deveríamos amanhecer lembrando a Deus o que está escrito em sua Palavra.

 Lembrando a Deus? Deus precisa ser lembrado de alguma coisa? Pois se foi Ele quem disse, eu vou contrariar? Deus disse assim: “Fazei-me lembrado, diz o Senhor.”

 Pois nessa manhã eu quero lembrar a Deus: “as suas misericórdias são a causa de não sermos consumidos. Elas se renovam a cada manhã.”

 Senhor, renove a sua misericórdia sobre nós, nesta manhã, para que nessa viagem amalucada, a cento e sete mil quilômetros por hora, nossas células não comecem a se reproduzir enlouquecidamente, nosso coração bata todo compenetrado, nossos vasos sanguíneos não virem bexiga, nossa bexiga não se torne intersticial, nossos olhos não vejam outras cataratas que não aquelas do Iguaçu, e principalmente, que a nossa mente se incline para o concreto, porque só de abstratos é feita uma vida muito dolorida.

 Nesta manhã de chuva e sábado, eu quero lhe pedir a leveza de um bolo fôfo de fubá, o morninho de um chá de camomila e a companhia do seu Espírito processado e disponível,  que me conduz, me delimita, me contorna, me conforta,  e me faz caminhar por uma avenida repleta de lírios brancos, sem sair desta, que é a minha casa.

 Dessa maneira, Senhor, apenas dessa maneira, eu poderei experimentar, sem sofrimento, a existência de uma mulher xerocadíssima, em estado de susto, com a vocação castíssima de um anjo que emprestando-me as suas asas, me permita voar. Porque existem momentos, Senhor, existem momentos, em que viajar a cento e sete mil quilômetros por hora é pouco. 

Eu quero mais.