O abandono

Uma hora da madrugada. A secretária eletrônica dispara os recados do dia e de repente a voz suplicante da mulher sugere uma crônica sobre o abandono. A voz era meiga e o sofrimento doce, falando à hora dos solitários. Sem dúvida era uma mulher que se sentia abandonada, e o seu pedido vem de dentro daqueles que no doce exercício da ingenuidade um dia se entregaram no amor e agora se sentem sós e tristes.

Cara amiga anônima: o abandono existe quando o sentimento é vivido em mão dupla. Há de ter o que foge escapando, quando tudo fazia crer na eternidade da paixão, e há o abandono, que num abrir e fechar de olhos faz ficar-se só diante da multidão, ou como alguém no escuro de uma casa, tentando achar o caminho da saída. De um lado está quem espera a recompensa e não é recompensado e do outro quem vai embora sem dizer adeus.

O abandono existe quando se quer a presença do outro que não vem. Ou quando nos instantes de fragilidade, de doença e dor, falta a solidariedade da mão amiga. Há abandono quando vem aquela sensação desesperada de vazio, onde nada preenche a falta e simples cadeira na mesa de bar transforma-se em lembrança. Quando o sono não aparece e o tempo é longo de passar, o tic-tac do relógio é demorado exercício de solidão angustiada.

É verdade que abandono e solidão não são a mesma coisa. Acontece a sensação de abandono, quando lado a lado caminha a rejeição. O abandonado é um rejeitado, alguém com o sentimento agudo de ter sido deixado no meio do caminho por outro em quem depositava esperança. A solidão nem sempre se acompanha de rejeição: podemos ser amados e vivermos em estado de solidão.

Aliás, a solidão – o universo do solitário é dividido em duas categorias: a dos solitários saudáveis (sadios) e a dos magoados (doentes). Os últimos, os enfermos, constituem a essência dos abandonados. São mulheres ou homens que amaram intensamente e ficaram amarrados na lembrança do passado sem conseguir olhar mais para os lados nem para o futuro. Pessoas que se sentiram traídas e nunca mais acreditaram no amor.

Não há dúvida que sobra razão aparente nos abandonados–solitários-doentes, naqueles que afirmam estar impossibilitados de amar novamente por não confiarem a quem entregar seus sentimentos, porém existem por demais des-razões inconscientes a fazerem o abandonado–solitário-doente permanecer por longos períodos na ilha do isolamento.

O maior abandonado-solitário-enfermo é alguém que perdeu a capacidade de discriminar, de perceber, de distinguir entre quem o procura com a intenção de atacá-lo ou o deseja carregado de boas intenções. E tal capacidade de discriminar o real do imaginário, por conta da desconfiança exagerada, transforma o abandonado em agente da solidão. Deixa ele de ser expectador para ser ator de sua destruição e passa de vítima a agente de seu masoquismo e sofrimento.

O abandonado-enfermo é um ser tão perturbado, que deixa transparecer o transtorno e alimenta tanto o passado em detrimento do presente que se torna o alvo predador dos mal-intencionados. Sem perceber, corta a possibilidade de uma nova relação por alimentar em demasia a história de ontem ou de antes-de-ontem. Os inimigos existem, é verdade, mas muitos deles são frutos da imaginação persecutória do abandonado.

Há os que se deixam abandonar, passando a idéia de que foram esquecidos. Deixar-se abandonar e se passar por vítima pode ser fruto de conflitos mal resolvidos ou decorrência de má-fé. Deixar-se abandonar, fazendo acreditar que foi ele quem verdadeiramente o abandonou, para Paulinho Mendes Campos, é pura arte onde poucos atingem a perfeição. Do ponto de vista psicológico há aquelas pessoas que iniciam o relacionamento já pensando em seu fim, tomando atitudes destruidoras no seu dia-a-dia e carregando de pesadume as mínimas conversações. O abandono já existia desde o primeiro encontro

Amiga anônima, quando diminuímos o medo da perda, vivemos melhores. Quando eliminamos a falsa idéia de segurança e culpa que a falsa moral cristã nos incutiu, no modelo ocidental, temos mais liberdade para errar e acertar, perder e recomeçar. Quando o passado não domina o presente, podemos sonhar e sermos mais livres numa existencial leveza de amor.

Maurilton Morais
Enviado por Maurilton Morais em 05/03/2006
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