O HOMEM COM TODOS OS SEUS ORIFÍCIOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

 
Meu Deus como é bom dormir, e como amanhecer amanhece. E como eu me levanto ao primeiro toque de clarim que anuncia o novo dia, premida pela urgência de ser essa mesma que se levanta todos os dias, em busca de um destino não glorioso. Que de -não glórias- é feita a vida desta moura, descendente de mouros. 

Meu Deus, como são mouros esses todos que são latifundiários, e os que são bilionários, e os que são empresários, e os que são proprietários, e os que são políticos, e os que são carregadores de sacos,  nos mercados municipais que abastecem o mundo. E também como são mouros, os que são mendigos, e todos os  demais que ainda não são defuntos. 

Este é o fundo comum de uma vida sem hierarquia, que acaba da forma como se sabe, que acaba, um dia. Natal após Natal. O Natal, que inventaram como sendo o dia do nascimento de Cristo, quer dizer: "receba Cristo neste dia, antes que não haja mais natais."
 
Nesta manhã, eu não tenho nada de ruim para lhes dar. Nesta manhã,  só tenho para lhes dar o que é. Não vou lhes apresentar o que não é, apenas para que me pensem de uma lucidez adaptada. Não há lucidez adaptada. Toda lucidez é desamparada. 

E a minha lucidez, nesta manhã, só quer examinar o homem, como um ser catalogável, na crueza de todos os seus orifícios. Os orifícios aparentes. Ninguém precisa me mostrar os que estão ocultos. O problema do homem são os seus orifícios. E vou lhes provar numa rasa reflexão orificial.
 
Nesta manhã,  eu só preciso de olhos que se levantem pedindo, pelo amor de Deus, por mais um pouquinho de escuridão e recebam a luz, bem no meio da retina. Eu só preciso de narizes que não queiram cheirar nada além do seu próprio chulé,  mas aspirem o cheiro de café.  Eu só preciso de bocas que bocejam, mas engolem, porque saco vazio não pára em pé. E esses sacos que se põem em pé, com os seus próprios pés, vão para um lugar de extrema relevância: o banheiro. Que de banheiros é feita a vida de um homem e de uma mulher. E no banheiro, outra vez, mais um orifício, aquele que não quero mencionar e já mencionei. E depois,  mãos bem lavadas,  a boca de novo. A boca escancarada para que a escova lhe penetre a cavidade, e limpe os dentes e a saburra da língua. E os dentes, numa única mastigada, engolindo o pão acostumado, sem outra alternativa, que não  comer o pão acostumado.
 
E a corrida contra o tempo: o homem e a mulher indo, que a vida, ao amanhecer, é feita de idas; e à noite,  é feita de vindas.  De helicóptero, de avião, de carro, de ônibus, de lotação, de trem, de metrô, de bicicleta, a pé, todos indo, e depois, todos voltando, agarradinhos com as suas bolsas, com as suas pastas, com os seus documentos, com os seus pensamentos. Os pensamentos sentadinhos e obedientes, como se tudo de bom lhes estivesse acontecendo, em troca desse nada que lhes pedem os orifícios.
 
Eu hoje não quero fazer da minha matéria de meditação nada específico, eu quero a generalidade. E nessa generalidade, meus olhos alcançam o Alemão, um gatinho amarelo ouro,  que na verdade eu chamo de Mizinho, porque a suas cordas vocais emitem um “mi” fraquinho. 

Mizinho foi atropelado por um débil mental que mirou o gato na calçada, e acelerou para ver o tombo. E no rodopio da pirueta que lhe foi imposta, Alemão caiu dentro de um bueiro.
 
Quando a notícia me chegou – e sempre chega – Alemão foi levado ao hospital e de lá voltou curado.  Para a rua de novo? Lógico que não. Para a minha casa. Ivo, no impacto da notícia - "mais um gato de rua aqui em casa?!!!"-   jogou-me na cara um travesseiro. Feito de plumas. Mizinho não miou e eu também não miei, apenas me comovi.  Ivo tem por mim uma paixão arrebatadora, que, às vezes, se manifesta  no macio de um travesseiro. Eu amo travesseiros de plumas, mas o meu é de espuma. E também amo Ivo. E também amo gatos. E cachorros. E periquitos. E papagaios. E plantas. E tudo o que vive. E vou me equilibrando precariamente entre tantos amores. Vale a pena. Amar é a única coisa que vale a pena.

Nessa manhã, de amanheceres que amanhecem, Mizinho nem miou fraquinho. Apenas escalou a minha cama, deitou em cima do quentinho do meu peito, e ficamos os três, silenciosamente,  entreolhando-nos: eu, Alemão ( que é Mizinho)  e um inseto que não é mosca, e não é abelha. Meus conhecimentos de zootecnia não me permitiram catalogá-lo. E meus conhecimentos de que -tudo que vive quer viver,- não me permitiram matá-lo.  

Pois nessa manhã de mouros, eu, Mizinho e o ser que voa, cada um cumprindo o seu destino, nos entreolhamos.
 
O inseto de côr,  que se furta a um catálogo de cores, dava vôos, curtinhos e rasantes, que diziam:  "como é bom dormir e como amanhecer,  amanhece."
 
Mizinho olhando para cima, acompanhava o vôo com a sua boquinha entreaberta, e a gengiva marcada por hematomas que nunca mais lhe sairão. Esse faz o seu anoitecer dez vezes ao dia, porque gato dorme 16 das 24 horas de um dia. 

Mas eu, eu que não tenho as asas do inseto, e nem a natureza dormitiva do gato, eu que não sei esconder o sol apenas fechando os olhos, fiquei comovida com o mistério que se formou e uniu  esses três seres tão distintos: o inseto, que voava; o gato, que rodopiava, sem sair do lugar, apenas com o pescoço molemolente e  olhos rápidos como um giroflex; e a mulher, que suportando o peso do gato, do inseto, da vida, dos homens e dos mouros, estava sendo de um puro heroísmo ao desvendar os orifícios do mundo. 
 
 Então ela pensou uma pensamento novo: este é o balé da vida e nós somos seres com sapatilha nos pés. Cada ser vivo, segundo a sua natureza, dança a parte que lhe cabe, até que a cortina se feche. 
 
Depois, essa  mulher renunciando à delicadeza impossível  dos bailarinos que também cultivam seus orifícios,  levantou-se para a realidade, abriu a Bíblia e leu o que nela está  escrito:
 
“ E a cidade não necessita de sol, nem de lua, para que nela resplandeçam, porque a glória de Deus a tem alumiado e o Cordeiro é a sua lâmpada. E as nações andarão à sua luz, e os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra. E as suas portas não se fecharão de dia, porque ali não haverá noite.” Apocalipse 21:23-25.
 
-Mas então é isso, Deus?
Sim, então é isso: é noite, e ainda não raiou o sol do meio dia. Este é o lusco fusco da madrugada, e essa estrela de quinta grandeza  que parece luz, é uma velinha acesa, que apenas anuncia a chegada daquela luz. E com aquela luz, vocês não ganharão apenas um dia eterno, mas um corpo novo, sem necessidade de orifícios. 
 
 Então, Deus permita-me corrigir a declaração inicial equivocada com que anunciei esta crônica.
 
Ela vai começar assim:
 
 “Meu Deus, como é bom acordar e saber que um dia seremos ainda mais acordados.” 

 E o resto, cada um pode escrever do jeito que quiser,  porque hoje todos estão convidados a comemorar  a satisfação do intervalo entre a meia luz e a grande luz, entre o sol que apenas se levanta a cada manhã, e aquele sol que não se deitará jamais, porque jamais haverá noite.

Tenham todos um bom dia, na esperança desse grande dia! E cuidem bem de todos os seus orifícios, que eu cuidarei dos meus.