RESSURREIÇÃO

RESSURREIÇÃO

PrimaVera de 1962. De tardinha, após os deveres da escola, ele sobe-e-desce a Frei Manuel da Ressurreição. Desce-e-sobe de patinete. Descida: Caminho Suave. Subida: o impulso lançado no patinete e o caminho árduo, ele aspira aromas contrastantes dos pisos das casas recentemente enceradas e dos temperos dos jantares, o rosto banhado de suor. Foi, então, que ele avistou no jardim da vizinha uma única e exuberante rosa amarela. Mãe, mãe, pede para a Mercedes e para o seu Amantino a rosa amarela, pede mãe, eu quero presentear a dona Dirce com aquela bonita rosa! Está bem, criança, vamos até lá. Seu Amantino está debruçado sobre o portão de entrada da casa - contabilista da Estrada de Ferro da Sorocabana. Lazer: jardinagem. Ah, o pomar, lá no quintal do seu Amantino, um tapete de morangos... e o aroma dos tomates, madurinhos!

O pedido da mãe foi prontamente atendido. Na manhã seguinte, bem cedinho, a rosa seria colhida e entregue ao menino, antes que partisse para a escola.

Seu Amantino colhe a rosa, retira os espinhos do galho, envolvendo-o, cuidadosamente, num macio papel-manteiga. Hora da partida: o menino uniformizado - camisa branquinha e calça azul-marinho até o joelho - desce a Frei Manuel, segurando com as duas mãos a rosa, o perfume da rosa amarela. Da merendeira, dependurada nos ombros, exalava o cheiro do lanche que a mãe preparara há pouco: pão, bife, queijo e suco de laranja. O menino esticou os braços ligeiramente, e a rosa posicionou-se mais à frente como uma coroa a ser entregue à professora das primeiras letras.

Final da descida. Agora o menino dobra à direita e prossegue o trajeto rumo ao Estádio e à Estação da Mogiana: salas de aula improvisadas, debaixo da parte interna das arquibancadas, talvez antigos vestiários de jogadores?! Lá fora, o campo, o gramado, um tapete todo verdinho! Descer só mais um pouquinho, a rosa amarela como um troféu o menino carrega, a escola está próxima...

Caminho Suave...

De súbito, surpreso! E o susto do goleiro na hora do gol, gol, gol! O menino se esqueceu do caderno de caligrafia, da cartilha também! Ressurreição, Ressurreição! O menino põe-se a chorar, ele está aflito, e assim tem início a corrida a galope... de volta ao lar. A visão embaçada pelas lágrimas, as mãos trêmulas, e ele corre, o caminho é árduo. Dona Dirce e a repreensão: você chegou atrasado, menino! fica de castigo! Ele corre e corre, o uniforme desengonçado, e a cada impulso do corpo ele já não percebe a rosa que traz nas mãos, as pétalas amarelas, uma a uma, desabando do ramo e deitando, uma a uma, ao longo das calçadas.

Ressurreição, Ressurreição, mãe, mãe, mãe, eu me esqueci do material, da minha cartilha! E a mãe ampara o menino em prantos, cheio de raiva da rosa amarela...

PrimaVera, 12 de outubro de 2003. Livros, cadernos de anotações, textos esparramados sobre a mesa, O Livro de Horas... Ele havia terminado de preparar uma aula. O telefone toca, ele atende e recebe a notícia: a mãe-vovó sofreu um infarto. Desorientado, ele caminha pelo apartamento. Céus! ele precisa de dinheiro para viajar até Campinas, até o hospital... Horário de visitas?! Ora, ora, dane-se o horário de visitas! Na sala do apartamento ele avista a TV: rapidamente consegue um comprador. São 7h da noite... Ele continua apreensivo. Ele não encontra resposta para a agonia que experiencia. Amanhã ele parte para Campinas, no primeiro ônibus. Tenha calma, vovó-mamãe! vai ficar tudo bem, já passou, está passando... Ele está exausto, deita na cama e adormece. 4h do dia 13: o ruído do celular o desperta: quem?!... alô?! É a cunhada: a mãe... ela está morta. Morreu às 2h ...

O celular é lançado ao longe. Ele perambula pelo apartamento. Em súbita fúria ele corre até a sala. As fotos dependuradas na parede são lançadas ao chão: molduras, fotos, cacos de vidro, rostos, fotos, o tempo, o chão forrado de estilhaços do passado...

São 7h da manhã. Durante a viagem ele contempla a desolada paisagem, os horizontes são tapetes verde-melancólicos desenhados pelos canaviais - eles tremulam ao vento como a dizer adeuses... Outra vez, só mais uma vez! A avó solicita à neta, quero ouvir mais uma vez o Adágio de Albinoni, é a música mais bela que já ouvi em toda a minha vida. A neta atende prontamente o pedido da vovó. Dia frio, vento gelado, tempo nublado. Finalmente ele chega em Campinas. Segue até o necrotério do Cemitério da Saudade. Entra no recinto: ele se encontra em profundo silêncio, em doloroso silêncio. Sobe as escadarias e, com vagar, ele se aproxima do caixão. Vê o corpo da mãe todo coberto de rosas amarelas, era assim... como uma túnica amarela, amarelas velas e chamas e ele sente o perfume da rosa amarela e ele carrega um doloroso silêncio dentro de si.

PrimaVera de 2008, um dia após as chuvas, ele visita o jardim da casa da vovó. Ele carrega um doloroso silêncio dentro de si. Repentinamente, ele avista a roseira em botões... Os botões prometem um ramalhete de rosas amarelas!

Prof. Dr. Sílvio Medeiros

Campinas, é primavera de 2008.