A ESPANHA ME FEZ E O BRASIL ME REFEZ.
ANA MARIA RIBAS.

A vida nos conduz por caminhos que nem sequer sabemos.  Eu sempre me soube predestinada a nada saber, mas exageradamente, esse “nada saber” é como uma ofensa íntima que se guarda, porque não se tem a quem reclamar. Pai e mãe, já foram: o departamento de reclamação, para mim,  fechou cedo demais.  
 
Antes de irem, eu lhes perguntava: por que foi assim? Meu pai era todo silencioso, mas minha mãe arriscava a resposta e ela vinha diretamente da revolução espanhola de 1936: O general Francisco Franco era o culpado. Ele que de fome, quase matara a minha ascendência, acostumada a garbanzos.
 
No aeroporto de Barajas em Madri, o cidadão que me esperava era um anônimo senhor de cabelos grisalhos e boina  negra, cujo nariz de atributos romanos lhe amenizava o rosto vincado. Tinha uma tabuleta  na mão, e lá estava escrito com letras irregulares, mas enormes : Sra. Bernardelli.
 
Meu Deus, que emoção! Sou eu, acenei com a mão, timidamente. O rosto do velho iluminou-se todo no dever de receber-me com honras, e o meu- onde os grandes olhos de espanto estavam ainda mais espantados – o meu voltou a ter a cor rosada,  dos que, finalmente, podem respirar em paz. Eu havia passado pela alfândega, o funcionário não me perguntara nada, e nem me convidara a voltar pelo caminho de onde viera: Que alívio!
 
Em seguida, puxando minha pesada mala, mais perdida do que cego em tiroteio,  outro presente de Deus: era recebida por aquele respeitável espanhol de Espanha, que até nariz romano tinha para esbarrar no meu, na hora de me saudar.
 
Pois foi assim que nos saudamos: como dois parentes que se encontram depois de uma longa ausência.  Como dois amigos que se visitam, após o exílio em outras plagas. Como dois, a quem o destino de um ultrapassara o do outro, e depois recuara, trazendo de volta.
 
 Quase beijo o velho, sentindo-o tão meu parente: era o funcionário da agência de turismo. Mas era meu parente. Naquele momento eu estava aparentada com todos os homens e mulheres da terra, tão incrível foi o sentimento de pertencer que me tomou, no momento em que pisei naquele país.
 
Eu me reconheci na modelo da capa de revista, em todas as modelos de todas as capas de revista - nas negras melenas adornadas por negras mantilhas, no rosto forte de influência árabe, na pele levemente morena de lembrança marroquina, nas mandíbulas quase quadradas, nas maçãs do rosto bem destacadas, no falar sem pausa, no respirar sem fôlego, no tom de voz um pouco acima do recomendável - eu me reconheci nas mulheres da terra.
 
E reconheci nos velhos, o meu  querido pai;  e nos menos velhos, os meus irmãos. Nessa identificação, eu era toda espanhola. Nem feia, nem bonita: apenas uma mulher espanhola.
 
Se me fosse dado uma mantilha, um pente, um leque, um vestido de babados e um par de castanholas, eu poderia sair por ali, dando olé, mas nem mesmo foi preciso. Dei um olé para a terra sem nenhum outro apetrecho que não o meu DNA  estampado na cara.
 
A primeira coisa que pensei foi: preciso chorar. O momento pede que eu chore!  E eu chorei.  Só não beijei o chão da terra, porque não sei.   O choro contagiou o velho “tio” espanhol, que sem saber o que fazer comigo, e não querendo mais separar-se da “sobrinha brasileira” que  acabava de lhe cair no colo,  brindou-me com um belíssimo passeio por Madri, que não estava previsto no programa. Só fui para o hotel quando já anoitecia.
 
 Era hora de dormir, mas eu era a Gran Via, toda iluminada; eu era a Plaza Puerta del Sol, onde o sol nunca se punha; eu era a Espanha inteira,  acesa, comovida, e agitada.  
 
Foram vinte e hum dias quase sem deixar de ser a Espanha.  Eu não podia dormir porque tinha que viver as 24 horas de cada um daqueles dias, por todos os meus, que nunca mais puderam ser espanhóis; por todos os meus, que também não conseguiram ser brasileiros; por todos os meus, que perderam a identidade, sendo nada. Então, naqueles dias, eu tinha que ser-lhes tudo. E se dormisse, voltaria a ser eu mesma.
 
 Não, eu não podia dormir. Ficava nas sacadas dos hotéis durante as madrugadas, olhando as luzes e sonhando os sonhos.    
 
 Não fui à terra para um turismo tradicional. Fui para fazer o caminho inverso. Muitos vão para  o caminho sagrado de São Tiago de Compostella. E eu,  para o caminho sagrado dos santos Antonio Ribas e Antonio Ribas Filho. Os caminhos da minha mãe,  levaram-me a Campillo de Purchena- um ôvo onde só coube um pinto. Mas nada disso importava: eu havia ido para refazer caminhos.
 
Meu primeiro destino- um pueblo de 300 habitantes: Hueneja, no sul da Espanha, próximo a Granada, encravado no sopé do majestoso Monte Nevado, onde há neve durante os 365 dias do ano.  Ali me nascera toda a família paterna.
 
 Debruçada sobre a ponte milenar que atravessa o povoado de Hueneja, na Espanha, eu vi o rio passar. E vi o povo viver e beber, da água daquele rio - um minguado filete que nunca se esgota, continuamente abastecido pelo degelo da montanha.
 
Às 3 horas da tarde, em Hueneja, é a hora mágica. A hora em que os sinos anunciam que o pão saiu do forno.
 
Em segundos, o povoado acorda da sesta, as portas das casas se abrem simultaneamente, e , lá de dentro,  velhos – velhos  homens e  velhas mulheres,- de negras roupas velhas,  apoiados em velhos bordões,  surgem  mexendo devagar o  corpo velho, e vão em direção à velha padaria,   guiados mais  pelo costume e pelo cheiro, do que pela obliterada visão.
 
 Hueneja às 3 horas da tarde cheira a pão. O cheiro, em todas as ruas, chega na frente de tudo.    Eu entrei na fila. Com pasta de alho, fatias finas de jamón, e lágrimas nos olhos, comi o pão, lembrando da nossa margarina. O monte Nevado foi a única testemunha das minhas lágrimas.
 
Eu sou uma mulher de lágrimas, já se sabe. Mas essas não foram por falta de margarina no pão.  
 
Essas  foram saudades de alguma abstração. Chorei por nada, mas esse nada foi tão grande, que me fez chorar por tudo.  Chorei pela ausência dos sabores da terra, de que foram privados os meus.  Chorei pelos jámons espanhóis, famosos em todo o mundo, que jamais voltaram a comer. Chorei pelas tortillas, adaptadas a cheiros verdes e outros temperos, neste Brasil de tantas ervas.  Chorei pelos chouriços, cujo sangue de porco, lhes era a lembrança mais genuína do sul da Espanha. Se não havia langostino, substituia-se por pollo. E como nada daquilo  havia, pobres que éramos, as substituições foram sendo feitas, gradualmente até que  a ração acostumada de cada dia, foi tomando o seu lugar, à mesa de cada dia. Embuchados com  arroz e feijão,  nesse país de proteinas e carboidratos, meus velhos foram aprendendo a enganar as papilas. Que de vez em quando, revoltavam-se.  De que maneira? Nem queiram saber.
 
Não sei porque meus avós e meus pais, vieram morar no  Brasil. Talvez tenham vindo para sofrer, que de sofrimento se faz a vida de alguns escolhidos. Aqui eles não enriqueceram, apenas sobreviveram. A arroz com banana: boa fruta desta terra.
 
  Imigrantes sempre foram motivo de exploração, em qualquer nação. Alguns conseguem a proeza de enriquecer trabalhando, outros enriquecem na esperteza, mas nem de uma única célula de esperteza foi constituida a minha genética espanhola.  Uma vocação impertinente para o trabalho escravo, essa sim, lhes possuiu por inteiro. E nenhum anseio para vôos mais altos, para a liberdade. Francisco Franco lá da Espanha, os dominava, aqui no Brasil,a minguados contos de reis.  
 
   Meu pai era de uma fidelidade quase canina: viveu praticamente toda a vida cortando panos para um turco chamado  Nagib Fakiani, cuja lojinha ficava encravada na Rua Batista de Carvalho, em Bauru. Olha a sina! Se meu pai ganhasse, uma única vez de seu Nagib Fakiani, ganharia também do Bill Gates. Mas meu pai nunca ganhou nada que não uma tristeza crônica no olhar, e um conformismo feito de mudos e prolongados silêncios.
 
Não fui a Espanha para fazer um levantamento sociológico do passado ou do presente. Fui para saber. Não sei direito o que fui saber. Na verdade, acho que fui aprender. Fui aprender que não se tira o pé da Pátria amada, sem que se pague um preço.  O primeiro preço é ter filhos que pertençam a outra nação, e que possam gostar de samba e música sertaneja, por exemplo. Meu pai detestava as duas.   Os demais, são tão inócuos quanto: torcer pelo Palmeiras, comer feijoadas aos sábados, e rabadas às segundas feiras. Tudo com cerveja, sem viño.
 
Meus avós e meus pais, tiraram os pés da Espanha, por força de uma ditadura, mas outros  ficaram, resistiram, e se deram bem. Bem melhor.  Lá a vida lhes teria sido mais amena. E os sabores mais apurados. Lá, teriam dançado Flamenco e tocado castanholas. Lá, o caminho da esperança passaria por autovias e não por picadas abertas a machado e mordidas de pernilongos.
 
Das picadas, sobraram os palmitos. Com os palmitos, fizeram-se pastéis. Eu amo palmitos e amo pastéis, mas lamento não ser cidadã do primeiro mundo.  Lamento ter sido destratada pelo motorista do ônibus que me conduzia, cujo respeito só consegui quando mandei-lhe na cara o palavrão preferido da minha avó. 

 Aquele palavrão salvou-me da maldade do homem e foi o meu passaporte para a dupla cidadania. Dalí para frente, ganhei o direito de assentar-me com ele, e a guia turística, nos restaurantes, e de colocar a minha mala sobre todas as outras, no bagageiro do ônibus. E de rir, das suas piadas grosseiras. E de conhecer o que pensam os motoristas a respeito dos estrangeiros que visitam a terra.  Lá, como aqui, todo burguês é um ser ridicularizado pelo operariado trabalhador. Que se danem,  que estraguem as suas preciosas malas  e que  gastem até o último euro, enquanto eles se indignam jocosamente com a nossa mansa vida de vinte dias. Que, na visão obliterada,  lhes parece ser a mansidão da vida inteira.
 
Ganhei o direito à cidadania espanhola, nos dias subsequentes ao palavrão. Na despedida, até lágrimas aquele bruto derramou. Mas isso me pareceu tão pouco. Eu queria mais. Eu queria ser a dona da  terra. Eu queria passar férias, na Costa do Sol.  Eu queria envelhecer nos asilos cinematográficos das colinas próximas a Barcelona. Todos – disseram-me- custeados pelo governo, bem como saúde, alimentação e qualquer gasto com remédios. 

Na Espanha, recebe-se o resultado dos exames médicos pelo correio, juntamente com os remédios a serem tomados, e a próxima consulta  agendada. Tudo sem fila e sem desgastes; que desgastado, o doente já está, para locomover-se em vão. Tudo tão primeiro mundo.
 
Eu gostaria de obter dupla cidadania.  Mas não essa dupla cidadania que se conseguiria com alguma persistência, enviando toda a papelada para o consulado da Espanha, no Brasil.  Eu gostaria de obter uma dupla cidadania de amores, de sabores,  de cheiros, de pendores, de praias de águas tépidas combinadas às águas degeladas  de Sierra Nevada, ambas entrando dentro de mim e me fazendo cidadã do mundo. E depois do mundo ser meu, então sim: eu seria dele e, juntos, faríamos uma casa universal na terra e essa casa seria a porta da casa de Deus, uma entrada para o céu.  
 
 Eu sei que essa é uma grave digressão existencialista. Eu sei que a minha memória genética guarda um mundo de sombras adormecidas, que a qualquer momento, podem ressuscitar e sair por aí, ao rodopio de castanholas. 

Mas não temam: brasileira para sempre serei. 
 Pois se só consigo a legitimidade entre motoristas, e guias turísticos, à custa de um palavrão,  é melhor esquecer a Espanha, valorizar o Brasil, comer arroz com feijão, votar no PT e aplaudir o Lula.
 
Viva a democracia! Viva o arroz com feijão! Viva o SUS! Viva Matinhos, no litoral paranaense. Viva esta caipirósca, que do noroeste do Paraná, vos escreve, comendo pão com margarina.
 
E viva Deus que me libertou das touradas imorais, das procissões que carregam deuses mudos, das ordens religiosas que impõem chicotadas no lombo dos penitentes, das cinco pontas da cruz de Caravaca, dos rosários de contas que, ao término de um sussurro, emendam com outro sussurro, sem nunca ter fim e sem que  a voz lhes chegue ao céu.  
 
 Foi melhor assim! 

* A foto foi tirada em Sevilha, numa loja de souvenirs.