Poderia distribuir luz

Bem cuidada, com muito para viver e aproveitar. Se não fossem a vida e a cabeça. O passado não traz as melhores lembranças: más escolhas e piores perseveranças não serviram apenas para endurecer o coração, mas para criar preconceitos e alimentar o desejo de vingança. Não que o faça conscientemente, sempre: às vezes, sequer o nota, mas faz. Aprendeu com a experiência, mas somente com o lado escuro e indecifrável dela.

Vergonhas e idéias pré-concebidas, sem análise ou bom senso constroem seu dia-a-dia: vergonha do sotaque, vergonha do passado, certeza de que “todos os homens são iguais”. E uma imensa mágoa e um mar de raivas não resolvidas no preconceito que embala essa pobre certeza.

Jovem, ainda, com o dever do sonho, prefere a certeza do pesadelo.

Bem cedo ficou avó. Avó sem genro, pois a maior lição que deu à filha foi de que “os homens não prestam”.

Vaidosa e curiosa, a cada dia se filia a uma nova comunidade do Orkut. É sua terapia e sua maneira de se sentir protegida pela silenciosa e anônima solidariedade de quem teve alguma experiência parecida com a dela. Talvez por falta de coragem ou de conhecimento, não criou uma comunidade especial: “Narciso acha feio tudo que não é espelho”. Ela seria a única filiada, para não haver concorrência e para ficar sozinha no seu mundo de Alice.

Admirada por seus dotes profissionais e, até, por sua beleza exterior, não se desfaz da triste armadura da mediocridade de pensamento. Nunca soube o que é perdoar-se a si mesma, nunca soube o que é resiliência, nunca quis ser feliz aproveitando o presente e esperando o futuro com a alegria da descoberta. Sempre preferiu apontar com dedo acusador, usar a metralhadora da pré-julgamento, sem qualquer critério; abater culpados e inocentes totalmente ignorantes de suas tristes razões.

Poderia distribuir luz, mas prefere viver sua triste amargura, igual ao sotaque, do qual se envergonha, mas nada faz para perder.