O BOLO

Esta história é curtinha. É só a história de um bolo. Contudo, é verídica.

Tenho que contar primeiro o cenário para que possam entender.

Ela estava num colégio interno, para onde tinha ido porque o pai, recentemente separado, não queria que a mãe a roubasse dele. Afinal o juiz dera ordem para que ficasse com o pai, não com a mãe. Os motivos? Não vêem ao caso.

Por todos esses contratempos, sua vida no colégio não era um mar de rosas. Durante o dia dava para agüentar, mas à noite, a tristeza e a saudade de casa doíam muito e chorava até adormecer de cansaço. Um dia depois do outro e uma noite no meio, era tudo o que a fazia suportar aquela mágoa.

Até que chegou o dia do seu aniversário. Já na véspera seu pranto tinha sido mais intenso. Ficava imaginando como seria seu aniversário se estivesse em casa. Com certeza, sua tia faria o bolo, docinhos caseiros, refrigerantes, os amiguinhos da vizinhança, os parentes, os amigos da casa e os inevitáveis presentes - lencinhos, brincos, perfumes suaves, flores silvestres, algum romance de mocinha - afinal já ia fazer 14 anos!

Na aula, tinha ficado muito quieta, tão quieta que estranharam não ter feito alguma “arte” , não ter falado pelos cotovelos, não ter provocado algazarra com alguma pergunta maluca. Depois, no refeitório, comera pouco, em silêncio. Na sala de estudo, seu alheamento era notório. Aí chegou a hora da recreação, onde as internas podiam partilhar a companhia das alunas do período semi-interno.

Estranhou que umas colegas a levaram para um canto do recreio com desculpa de contar-lhe coisas, que afinal eram sem importância. Mas tinha um motivo: as demais, umas 30 garotas, prepararam uma bancada no centro do pátio com um bolo de dois andares, não muito pequeno, todinho coberto de glacê branco, lisinho, com alguns enfeites cor-de-rosa à volta toda. E a chamaram.

Veio em direção daquela festa improvisada, já o sorriso alargando seu rosto bonito de menina-moça. Pelo menos seu aniversário não passaria em branco, que bom que lembraram dela! Aquele bolo vinha mesmo a calhar, nem tinha almoçado direito de tanta tristeza e adolescente não fica muito tempo de barriga vazia, não.

Em cima do bolo as 14 velinhas acesas enfeitavam sua vida, nem que fosse por momentos. Cantaram o “Parabéns a você”, bateram palmas, soou o pique-pique, é hora, é hora e gritaram: corta o bolo - corta - corta.

E ela toda feliz, ruborizada de prazer, o coração alagado de agradecimento, pegou a faca e cortou o bolo.

Cortou?

O bolo era feito de duas tábuas grossas de madeira, estrategicamente colocadas uma sobre a outra, cobertas de glacê branco, lisinho, com enfeites cor-de-rosa à volta toda.

Foi uma gargalhada única, saída da boca de todas aquelas mocinhas, continuando sem parar por todo o pátio do colégio.

A princípio, diante da resistência ao corte da faca, ainda pensara que quem fizera o bolo tinha errado a receita para ele ter ficado tão duro! Só depois, diante dos risos de mofa e das caçoadas foi que entendeu o que lhe fizeram. Nem a fome sentia mais. Seu estômago parecia ter um nó, que doía, doía e seu coração se fechou; a raiva, a indignação, a revolta foram dando lugar a um profundo sentimento de impotência e tristeza.

Não houve sensibilidade para entenderem a sua quietude, o seu distanciamento, essas coisas não eram levadas em conta naquela idade de sonhos e brincadeiras. Aos poucos foram se dispersando, ainda rindo e comentando a expressão de seu rosto espantado.

No domingo seguinte ao seu aniversário, o pai chegou com seu presente, uma coleção de livros. Pedira “O tesouro da juventude” , ganhou “O mundo pitoresco” . Sua tia lhe mandou uma caixinha de música, que ela queria há bastante tempo. Ela tocava “Lar doce lar” e “Velha canção do lar”. Que ironia!

Sabe o que lhe restou? Chorar até dormir, afinal o que podia fazer uma menina de 14 anos?

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 24/09/2008
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