NINGUÉM PRECISA SER GALINHA PARA AMAR ULISSES. 
ANA MARIA RIBAS.
 
Meu vizinho tem um galo. Há que se respeitar um vizinho desamparado, que mora sozinho, que perdeu o pai, que perdeu a mãe, que perdeu os irmãos, cada qual para o seu mundo, e adotou um galo. Ele também adota cachorros, mas depois esquece de alimentar os cachorros, e aí surge-me um grande problema, porque, sem brigar com o vizinho,  tenho que entrar em cena, para libertar os cachorros, amarrados no fundo do quintal, a pão embolorado e água suja.  Esse bondoso homem ama cachorros abandonados, mas não cuida dos cachorros que ama, porque ele próprio precisaria ser cuidado.  Entenderam o drama? Não há ração nem para o cachorro, nem para o passarinho, nem para o vizinho. E durma-se com um barulho desses.  
 
Pois agora, graças a Deus, esse vizinho adotou um galo, graças a Deus, cujo quintal( do vizinho)  tem tanta minhoca,  graças a Deus, que, sozinho, dá conta da fome do galo, graças a Deus. Da conta da fome de comida, mas não da fome de outros seres de sua espécie.
 
Pois então.  Esse galo, marido de galinha, parece estar viúvo. E  canta  a sua viúvez no terreno contíguo ao meu quintal, ao lado da sala, onde a massagista vem-me atender.  Uma sinfonia que amo, mas, às vezes, me parece tão dolorida, que nem sei explicar se a dor é minha, propriamente, ou do galo, tão somente.
 
Viu que eu “tenho” uma massagista? É, eu tenho uma massagista com mãos de fada. Se não tivesse,  minhas costas não dariam conta das horas que já passei no computador, e das horas que ainda haverei de passar no computador. Se Deus permitir. Computador está se tornando para mim um troço absolutamente imprescindível, para eu escrever sobre galos.  E, como uma coisa puxa a outra,  massagista também. Até parece que sou fútil, mas não sou. O computador é por conta da profissão – sou escritora, lembram?- e a massagista é por conta da ordem do doutor. Dr. Ivo.
 
 Mas estou falando do galo. Só ouço o seu cantar, nesse momento em que estou ali, desamparada como franga dessossada. Nessa hora, o galo canta. É porque a minha massagem coincide com o cair da tarde, com o pôr do sol, que é a hora em que, excetuando-se as madrugadas, o galo canta. Então, toda tarde, ouço o galo cantar. E me comovo com o seu canto: o galo é velho.  
 
Todo ser humano tem um centro térmico regulador. O galo tem um centro cantador, e fui eu quem descobri isso, só que ainda não divulguei o resultado da minha pesquisa científica. Quando o IBAMA anunciar, você já sabe que fui eu. O centro cantador do galo deve estar diretamente relacionado com a regulagem da luz do sol. O galo canta quando pressente que vai amanhecer, porque ele cansou de dormir. E também canta quando pressente que vai anoitecer, porque cansou de estar acordado. O galo canta quando está cansado de ser.
 
Ontem, eu ouvi o galo cantar, fechando mais um dia. E distraída, como sou,   disse em voz alta, de pura melancolia:
 
-Coitadinho do galo.
 
 Eu não disse para Léia ouvir ( Léia - a massagista). Também não disse para o galo ouvir. Eu disse para Deus ouvir. Mas poderia ter dito só em pensamento, porque Léia ouviu. E depois que ouviu, vi-me em apuros para responder à pergunta que ela, toda viva, fez-me  a mim, toda desfalecida:
 
- Por que coitadinho do galo?
 
Eita  meu Deus, e agora, como vou responder?
 
 Léia tem dessas coisas: as mãos são de fada, mas a cabeça é de veneziana fechada. Ou de pianista que pode passar horas batendo na mesma tecla desafinada.
 
 Como explicar a essa veneziana fechada, que  já coloquei uma escada para espiar o galo no quintal do vizinho, - para ver se esse ser bípede estava bem cuidado, se tinha comida, se tinha água, se tinha bastante sujeira no quintal- e vi, também, algo que não gostei de ver:  que  faz parte da natureza do galo ser coitadinho.
 
 - No final da massagem, eu explico.- respondi, de olhos cerrados.  Para ganhar tempo. E para ver se ela esquecia.
 
Ao fechar os olhos,  perdi a massagem. Perdi o bom da massagem. Perdi as mãos da massagista. Perdi o contato com cada fração do meu corpo, que já é todo inteiro de alma e espírito. Fiquei só com o galo.
 
O galo é um galinhão. Um galinhão que tomou chá de trepadeira. No bom sentido. Pois, se ele é enorme, como não haveria de ter tomado chá de trepadeira?  O galo tem uma vocação irremediável para a solidão. Isso ninguém percebe. Só fazem apologia ao bom da vida do galo, e nem percebem que, para cada momento do-bom-da-vida do galo, há séculos de uma irremediável solidão.
 
 O galo come minhoca, com uma extrema delicadeza. Ele pega a parte dianteira da minhoca e lhe dá uma bicada, bem de leve. Nesse bem de leve, os dentes serrilhados ( esse galo tem dentes, mas é o bico que lhe serve de dentes), nesse bem de leve, os dentes serrilhados   já levam a primeira porção. Que ele degusta, suavemente fazendo um gutural e quase inaudível cócócó. Que quer dizer: gostoso, gostoso, gostoso. Depois, ele come a parte traseira da minhoca, sem nem desconfiar que está comendo minhoca com maionese. Que minhoca tem maionese. Tudo é bem caprichado nessa cadeia alimentar: a minhoca que não vem com maionese, vem com catchup, ou vem com mostarda. E tem o selo do INGALO.
 
O galo é dono de uma crista de fazer inveja a qualquer poder humano. A crista do galo é vermelha, porque o galo é comunista. Ele não se importa de repartir as galinhas com os demais companheiros galos. E nem mesmo com os companheiros humanos. Ele reparte a coxa da galinha, as asas da galinha, as visceras da galinha, o peito da galinha, o curanxim da galinha ( meu açougueiro fala assim: cu-ran-chim)- o galo reparte  tudo o que a galinha tem com aquele que, em troca, pode lhe dar – ou não- uns míseros grãozinhos de milho. O galo é bom.
 
Eu é que sou ruim.
 
Quando a massagem termina, estou mais ruim ainda. Quero sair correndo, para escapar da questão, e  me levanto lépida como o vento. Digo a mim mesma: vou conseguir, vou conseguir, vou conseguir. Mais três passos e estarei livre de explicar porque o galo do vizinho é coitadinho.
 
Tudo em vão! Antes que alcance a porta,  vem-me a pergunta e antes que a pergunta se complete, vem-me a resposta. Tenho que ser tão inteligente quanto Eistein, mostrando a língua para o mundo.  
 
Dona Ana Maria Ribas, a senhora não me respondeu:
-Por que o galo é coitadinho?
- Porque ele é galo.
-Ahhh!
 
Meu Deus do céu, e não é que ela parece compreender? Acho que a veneziana começou a abrir-se para o mundo dos galos.
 
Que ninguém precisa ser galinha para amar um galo.   Basta ser gente.
  
Essa reflexão rasinha sobre um galo é uma forma de protesto. Ontem escrevi  sobre a Espanha e poucos leram. Tão lindo o que escrevi!  Eu compro uma passagem, viajo para a Espanha, conto tudo com o coração e alma,  e ninguém lê, pelo menos, com os olhos.

Tenho eu o direito de prostestar quando escrevo coisas profundas e ninguém lê? Não tenho! O leitor é livre para ler ou não ler, já sei: sou socialmente correta.  E antes que me digam, eu digo: O leitor é livre para ler ou não ler.

  Mas assim mesmo protesto. Tenho vocação para protesto, desde menina. Que se há de fazer? E no protesto, não existe o socialmente correto: existe o protesto. 

Pois então: essa é a minha forma de protesto.  Quem não quis conhecer a Espanha, fique a vontade para conhecer hoje o galo do meu vizinho. O nome do galo é Ulisses e o do meu vizinho é ... deixa pra lá. 

Tenham todos um bom dia na presença de Deus. 

Filhinhos: A bênção final é para amenizar o sermão.