Lembro do arroio Santa Maria, que na pequenez da minha infância, parecia um gigante. E vou lembrar dele como o gigante que foi, em outros tempos.

Era na calada da noite que agia, quando as chuvas precipitavam-se sobre as plantações, enchendo as sangas, que o Santa Maria saltava do seu nascedouro em Pedras Altas, no interior do Rio Grande do Sul, e cruzava o Cerro Chato, correndo furioso e, como um guerreiro, pegava o exército despreparado na escuridão.

Criança ainda, aquilo para mim era um evento místico e poderoso.

Em certas manhãs, uma quietude natural coroava o término das chuvas de várias noites e, então, saíamos eu e meus irmãos, pelas estradas de chão encharcado. Encantava-me com as garças brancas de bico e pernas escuras e pés amarelos, já saídas de seus dormidouros, comendo insetos e pequenos peixes nos campos inundados.

Corríamos à frente dos adultos, nos caminhos molhados, para olhar o rio, que passada a fúria com que descia, chicoteando as margens, derrubando arbustos, invadindo casas à beira da linha dos trens e arrastando animais indefesos, nos observava, como um gigante poderoso, realizando suas façanhas e invadindo os arredores. Carregando cruzeiras que tinham suas tocas nas margens e filhotes de aves que ali nidificavam.

Vitorioso, na batalha travada com a natureza, o Santa Maria obliterava seus perdedores, e como todo o vencedor, escrevia a sua história, espalhando-a pelas encostas e capões.

Mas nem toda a fauna era decapitada pelo gigante, o esperto suiriri cavaleiro, associava-se ao gado, no lombo dos cavalos e junto das capivaras para alimentar-se dos insetos que o pastoreio negligenciava, longe das águas.
Quando as chuvas ocorriam antes do outono, podia-se observar o socó, de hábitos crepusculares, com seu manto cinza e peito de cor canela, olhando de longe a imensidão de águas.

Como o suiriri-cavaleiro e o socó, eu tinha a minha história, que já começava a escrever, e não temia o gigante. Imaginava as sereias ruivas sobre suas águas...

Justamente nesse tempo, nos grandes centros culturais, noticiavam-se achados de cavernas escavadas, que revelavam o Pergaminho de Cobre e os famosos textos de Nag Hammadi, reveladores do mito da sereia, a deusa-peixe. E eu, nada sabia dessas coisas. Não sabia do segredo da sereia, da metáfora de sua figura e, no entanto, ela era personagem da minha imaginação criadora, nas enchentes do Santa Maria.

Faz pouco tempo, cerca de um ano atrás, vi o gigante. Descansava sonolento, com águas mansas, observando as margens solapadas, pela força de suas águas, agora, devolvidas a seus habitantes: as serpentes de volta a seus dormidouros, o cantar alegre das fêmeas que nidificavam próximo, nos caminhos de terra, no meio de pedras ou nos altos capins.

Muitos dos que veneravam o gigante abandonaram-no, inclusive a ponte construída, mais tarde, para proteger os caminhantes, ciente da sua inutilidade, deixou de prestar-lhe auxílio.

E o gigante hoje vive só, oferece as pedras quase emersas para o repouso das sereias, das garças brancas, do suiriri-cavaleiro, dos caminhantes...

E a história se refez, agora contada por outros heróis. É uma nova história, construída sob a ideologia de novos vencedores, historiadores de um novo tempo que olham o gigante adormecido naquele espaço imenso.

Mas o Santa Maria lá está, com seu aspecto místico, como um pano de fundo de rara beleza, discutível talvez para quem não o conheceu, mas visível aos olhos dos filhos, como um pai amado que envelhece e que temos medo de perder.

E temo o seu despertar, o despertar de um guerreiro, de um pai saudoso, que não se deixa vencer na força da senectude. E, na sua aparente sonolência, escondendo a robustez do herói que sempre foi, temo que volte a editar a sua história de gigante invencível.

Eliza Fernandes
Enviado por Eliza Fernandes em 06/03/2006
Reeditado em 01/04/2006
Código do texto: T119704