ENGATE A RÉ, MAS SIGA EM FRENTE. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

 

Eu ontem relembrei o passado. Fui procurar na minha biblioteca cerebral detalhes que me fizeram retroceder no tempo. Pareceu-me tudo tão nítido e eram apenas lembranças.  

 Não gosto de relembrar o passado. Porém,  de certa maneira, seria um desperdício não recordar os equívocos que cometi, pela vida, como parte do aprendizado. Fui buscar os erros do passado, para analisar, sintetizar, comparar e ensinar os que ainda  podem,  apenas, acertar.

 Os que podem apenas acertar são aqueles que têm uma vida inteira para gastar, com a possibilidade, mesmo que remota, de acertar sempre.

 Como o mancebo que foi até a minha casa, seriamente abalado com as quirelinhas da vida. Diante desse ser tão frágil,  indeciso  como um passarinho que parece ter perdido o desejo de voar, exibi um raio X com as cicatrizes das minhas asas machucadas, e dei   a receita do  elixir mágico que me curou: o tempo. O tempo, sob as mãos poderosas de Deus, transformando o material em produto altamente reciclável.

 O tempo e o vento. O vento do Espírito.

Sempre é tempo de olhar para cima e para o alto. Mas na juventude, podemos ter essa disgressão que nos leva a valorizar excessivamente a porção de nós que foi machucada, e nos fixarmos nela. Como se ela fosse o todo.

 Não é: Nós somos inteiros e a porção machucada é apenas uma fração.    

 Mas que atração temos nós, os humanos, pelo ato de lamber as nossas próprias feridas, como aquela criança que, quando chega uma visita em casa, corre para exibir o joelho que machucou.  Feridas excessivamente lambidas nunca cicatrizam. Mesmo quando nos consideramos maduros, nem sequer reconhecemos  que há um efeito didático na dor. Lambemo-nos muito, na tentativa de valorizar excessivamente os nossos sentimentos. Nem queremos a cura, queremos o reconhecimento de que, afinal, “eu sofro, logo existo.” Queremos a lambeção.

 Não por acaso, nascemos com o sentido da visão totalmente imaturo. Não distinguimos quase nada, e segundo os cientistas, a visão só se completa por volta dos 4 meses.

 Mas cientista não sabe nada, ou sabe muito pouco. A visão nunca se completa. Ela sempre se amplia, sempre se alarga, sempre se traduz além e aquém da retina, e isso não significa nenhum distúrbio visual envolvendo a mácula lútea. Significa, apenas, que somos seres com a capacidade de enxergar abstrações. Significa também que, pela vida afora, essas abstrações irão se materializar em aprendizagem.

  Significa que aprendemos a repousar os nossos olhos na saudade, na dor e na tristeza, construindo com elas o nosso travesseiro de plumas. Um dia, abrimos o travesseiro, e as plumas voam. Mas logo, aparecem outras plumas para encher o nosso travesseiro de pedras. Que, com o tempo, transformam-se em plumas.

 Entre pedras e plumas, transcorre a vida. Quem quer viver apenas de plumas, não conhecerá o duro da pedra e também não saberá valorizar adequadamente, o macio da pluma. Há uma tensão necessária e benéfica entre a pedra e a pluma.

 A isso eu chamo libertação. Essa libertação só acontece quando aprendemos a visualizar nossos sentimentos pela ótica da Palavra de Deus, catalogando e identificando aqueles que nos delimitaram, e aqueles que nos impulsionaram. Muitas vezes, nem temos forças para lutar contra os fantasmas das nossas óperas. Nesse caso, melhor deixá-los conviver nas sombras, que sombras também podem ser criadoras. Basta entregar tudo nas mãos poderosas de Deus.

 Tive uma amiga com a qual eu me permitia repartir o silêncio. Éramos tão amigas que o silêncio nos bastava, sem nenhum constrangimento. Até nos orgulhávamos disso. Ela entrava pela porta da minha casa, e se eu estivesse deitada num sofá, ela se deitava no outro. A saudação era curta e afetiva:

 - Oi Anador –ela me dizia, acrescentando ao Ana do meu nome a palavra dor.
- Oi Marlosa – eu repetia juntando ao Marli do seu nome a palavra amargosa.

Duas bobeiras que não diziam nada, mas falavam tudo. Uma intimidade para poucos. E ali, não raro, uma de nós tirava um cochilo, na frente da televisão, e quando aquela acordava, a outra já havia ido. Assim era a nossa convivência: estreita e fiel. Todos os dias nos falávamos ao telefone e todos os dias, ou quase todos os dias, nos víamos nesta pequena orbe.

 Um dia, pelos descaminhos da vida, nos perdemos. E o silêncio que era uma ponte a nos unir, tornou-se um abismo que já dura mais de 20 anos. Ela mudou-se daqui, e eu mudei de mim. Não sou mais a mesma pessoa e com certeza, nem ela também será mais a mesma pessoa. Ainda que houvesse uma reconciliação – e da minha parte, houve uma tentativa- ainda que houvesse essa reconciliação, Anador e Marlosa morreram.

Mas quanto custou para ambas,  elaborar essa perda silenciosa, dentro de nós. E quanto esse acontecimento foi totalmente contraditório. Por um lado: torpe, fútil, ignóbil, destituído de sentido. Por outro lado: absolutamente necessário, para a minha evolução espiritual.

 A partir desse evento, Deus começou a construir essa que hoje - ainda – continua em construção. A partir dessa situação extremamente dolorosa, eu ganhei uma solidão necessária, e uma busca incessante pelos eventos do mundo espiritual.

 Se há uma Verdade, eu compreendi que ela não está circunscrita aos limites da terra, e por querer demais a Verdade, também passei a querer demais o céu. E continuo querendo.

 Mas hoje o meu querer é feito de conciliações entre a fé nas verdades divinas e a fé nas possibilidades humanas. O homem não pode aprimorar-se sozinho, e, se pudesse, esse aprimoramento teria um efeito apenas doutrinário. Contudo, Jesus pode transformar o homem, e o faz, muitas vezes, através do próprio homem. Por causa disso, penso ser possível conjugar Marlosa com Anador, desde que o médico que administre esses dois sais de remédios  tão distintos, seja o Senhor Jesus. Caso contrário, penso ser melhor que toda amizade guarde um necessário distanciamento, para que dois sejam dois. Porque sem Jesus, dois, nunca serão um. Nem mesmo no casamento, quanto mais numa amizade.

 Vinte e dois anos se passaram, e outros vinte e dois anos, provavelmente se passarão, até que a morte leve uma, e depois a outra, sem o necessário perdão. Varremos para debaixo dos nossos tapetes a sujeira que produzimos há 22 anos e há 22 anos convivemos com ela. TaLvez, nem nos incomode demais, essa sujeirinha a toa.

 Eu me dessensibilizei, quiçá, ela também tenha se dessensibilizado.

 Mas a Palavra de Deus, não se dessensibiliza com o tempo. Ela é eterna e ela diz assim: “ Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade, te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.”

 Estamos todos a caminho e um dia, estaremos diante do grande Juiz. Naquele dia, tudo o que está oculto virá às claras, e tudo o que foi dito em segredo, será proclamado em alta voz. Se devo algo a ela, quero aproveitar este site que tem corrido o Brasil e com certeza, chegará até ela, para lhe pedir perdão:

 -Marlosa, perdoe-me. Não quero ter que pagar lá - nada que possa ter ficado devendo a você, aqui. Por isso, lhe peço perdão. E também porque no meu coração não há mais lugar para rancores, só há lugar para um imenso e grande amor. Amor por todos os seres, sejam eles amoráveis ou não amoráveis. E você sempre me foi tão amorável!

 Daqui deste espaço virtual, daqui de onde tenho aberto tantas vezes o meu coração, exibo o raio x com as marcas das minhas asas machucadas por dores mais densas. Bem mais densas. Elas são as mais altas credenciais que Deus me concedeu.  Com elas, eu posso dizer: “sou uma mulher de dores e carrego na minha alma as marcas de Cristo”.

 Na verdade, sou uma mulher de uma única grande dor, mas essa dor é tão grande que se equivale a todas as dores do mundo. Sem saber você profetizou sobre a minha vida: Ana +dor.

 Hoje, entendo que: no exato momento em que nos separamos, Deus começou a preparar-me para ser essa grande dor. O aprendizado tinha que ser solitário, intensivo e monástico. No ano de 1986, Deus separou-me do mundo e separou o mundo de mim. 

 Pouca coisa temos hoje em comum, o mundo e eu. Apenas o absolutamente necessário. Ele não sente a minha mínima falta, e eu também não sinto a mínima falta dele. Somos quase incompatíveis.

 Que é a vida? Carl Sagan, disse que a vida é uma longa jornada feita de genes, cérebros e livros. Achei tão sugestivo que um cérebro privilegiado como Carl Sagan tenha relacionado três coisas: a nossa biblioteca genética, a nossa biblioteca cerebral, e os livros. Com elas, um homem se faz. E Deus refaz.

 Porque o último livro a ser aberto, no Universo, será o Livro da Vida do Cordeiro, que só o Senhor Jesus poderá abrir. Autoridade para isso Ele já tem. Quanto anseio por esse dia em que todos os equívocos se desfarão!

 O meu desejo é que, nesse grande dia, os nossos nomes estejam escritos no livro da Vida do Cordeiro, e que não haja mais dívidas a pagar. Que o tempo, o vento, e o sangue de Cristo, tenham coberto todas as apólices das nossas dívidas. E que essa cobertura inclua até mesmo a dívida mais cara: a dívida do  nosso coração.