A Noite em que Meu Pai Chorou.

Era noite de verão, na casa de praia onde nós crianças nos esbaldávamos entre os banhos de mar e as aventuras nas dunas. Naquela noite, porém, não se ouvia risadas, não jogávamos baralho e falávamos baixinho.

Meio escondida na porta da sala, eu, menina de nove anos, junto a minha irmã, primos e primas, via meu pai sentado à mesa, ladeado por minha mãe, minha tia Eliane e meu tio Garibalde, concunhado e amigo.

O seu rosto bonito e jovem expressava uma dor profunda, que eu desconhecia. Pela primeira vez eu via um homem chorar e esse homem era meu pai, aquele que enxugava as minhas lágrimas.

Naquele momento o quadro era outro. As lágrimas dele caiam sem pudor em seu prato de sopa e eu não podia consolá-lo.

Não me sentia preparada para adentrar no círculo sombrio que levava meu pai a chorar. Sua mãe, vovó Ritinha, havia morrido naquela tarde, aos cinquenta e nove anos, de uma enfermidade rápida.

Papai não escondeu sua dor. Reagiu sem perder a doçura herdada da mãe e manteve a honradez que meu avô transmitiu.

Minha avó era querida e admirada por todos. Já escrevi sobre meus avós paternos, em um texto intitulado A Carta, onde falo sobre um escrito de vovó Ritinha à sua madrinha nos anos trinta.

Hoje é aniversário de papai. Eu não queria falar de tristeza, mas essa cena veio-me forte e o texto foi saindo de mim naturalmente. Talvez porque tenha sido o meu primeiro contato com um pai carinhoso e forte, mas que também chorava. Talvez seja por eu não me sentir tão feliz hoje.

Meu pai, no entanto, deixou muito mais lembranças boas que más. O nosso cotidiano era de uma família harmoniosa. Ele e mamãe formavam um casal feliz criando filhos com amor.

Se houve excesso na minha infância foi de proteção e amor. Algumas vezes sinto-me despreparada para lidar com as pancadas da vida, mas não posso responsabilizá-los.

Eles achavam que nos protegeriam para sempre, porém meu pai se foi aos cinqüentas anos, quando eu a filha mais velha era uma "mãe menina” de vinte e cinco anos. Idade em que muitas mulheres lutam há tempos para sobreviver e já sabem se defender. Eu não sabia.

A partir de então passei a lidar com o lado feio da vida sem armas. Em compensação o amor que recebi nutre e une a minha família até hoje. Do meu pai, além do afeto em abundância, herdei a honestidade perante a vida, a coragem de me assumir como sou, o respeito pelos que sofrem e a independência de opinião.

Não tenho todas as qualidades deles. Talvez não tenha realizado os sonhos que ele sonhou para mim. Mas ele vibrou quando passei no vestibular, me conduziu ao altar e viu com ternura minha filha nascer .

Em alguns instantes penso que ele com sua sensibilidade, intuía que a rebeldia adolescente, que me levava a discutir com ele e correr para o quarto, de onde ele me tirava com um abraço e eu me desmanchava de chorar, fazendo as pazes imediatamente, me conduzisse a caminhos difíceis em alguma fase da vida. Só não previu que nem sempre eu teria ombros largos como os dele a me confortar.

Foi esse o pai que Deus me deu e sou grata. Ao meu pai eu prometo hoje fazer tudo para ser feliz como ele desejou que eu fosse e me dirijo diretamente a ele dizendo que criei uma filha linda, que apesar de não lembrar do carinho com o qual ele a tratou nos últimos meses de sua vida, se orgulha muito de ser sua neta.

Evelyne Furtado. Em 26 de setembro de 2008.

Evelyne Furtado
Enviado por Evelyne Furtado em 26/09/2008
Reeditado em 28/09/2008
Código do texto: T1197893
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