FALOU E DISSE

Tudo na vida é uma questão de referência. O grande problema de alguns é que se socorrem de referências equivocadas, quando não exageradas.

A vida no campo passa lenta e as rotinas bem conhecidas são realizadas sem maiores emoções, embora muitas vezes divertidas. Naquela manhã, o dia estava claro, haviam chegado os ares da primavera, o vento costumeiro soprava ameno, ao contrário do que ocorria nos meses anteriores, e o sol acariciava os rostos felizes com o final do inverno que este ano foi forte e chuvoso aqui no sul. No curral, homens se divertiam atirando laço em uma ou outra vaca e ainda que uns fossem mais eficientes na brincadeira, outros mais riam que acertavam suas laçadas e nem estava preocupados com isso.

No entorno, circulava uma velhinha que era a única mulher por ali, vó Tilica para os netos, Tilica simplesmente para os mais velhos. Uma referência, um exemplo, um arsenal de virtudes forjado na vivência dos anos, nas agruras da vida e nos alegres momentos que seu modo de ser ajudou a oportunizar. Sobretudo, mantinha no rosto, entre sulcos, marcas, rugas, a candura de quem soube compreender a importância da fantástica aventura de viver e aceitar o que, quando inexplicável, eram desígnios divinos. Mestiça, neta de escravos, baixinha, mãe de um punhado de filhos que cresceram e viveram com pouco, como ela que serviu naquela casa de fazenda a vida inteira, cresceu e viveu por ali “como se fosse da família”, fazendo agora coisas mais leves como dar comida para as galinhas e colocar alguns princípios de moralidade para a criançada, que não é muita como antigamente, mas insiste em fazer arte e dizer palavrão.

Após três tiros de laço que foram o mais absoluto insucesso, Zé do Rodeio sentiu o peso dos anos. Seis décadas de lides campeiras, noites mal dormidas, cachaçadas inesquecíveis e rodeios que perdeu a conta, além das rodadas, dos cavalos e de cervejas, umas costelas quebradas e um ar que insistia em sorver aos poucos por culpa do velho cigarro lambido, costume que mantinha apesar dos alertas do “dotor”, falou aos amigos, de forma que pudesse ser ouvido pela quase distraída, que estava uns dez metros dele:

- Eu tô que nem a Tilica. Parece que tenho trezentos anos.

- Ah! Exclamou ela, como quem diz, “que bobagem”, e lançando um olhar sereno e cheio de expressões que manifestavam milênios de sabedoria adquirida, num corpo quase secular, falou alto o suficiente para ser ouvida por quem estava mais perto, eu tenho apenas..., e fez uma pausa para pensar, ... oitenta e dois.