VOCÊ SABE O QUE TE FALTA E O QUE TE SOBRA?  
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

 

Ah, a sensação que se tem, de que os dias para se gastar são em menor número do que aqueles que já se gastou. Que o crédito diminui um pouco a cada momento. Que a vida é como um reservatório de água, que vem cheio, mas vai esgotando, de maneira imperceptível, a cada segundo. E que não se sabe, exatamente, por onde anda a linha da água, mas se pressente que o nível já vem batendo pela altura do joelho. Que de joelhos se faz a vida diante do que já se gastou em vão.

 Meu Deus, que construí eu, nos dias que já gastei? E que farei eu para não gastá-los tão em vão? Esses que me restam, como fundo de reserva? Manchados, turbados, cristalizados em silêncio de espera, como o gole ao moribundo? Na sede, apenas adivinhada? A quantas andará o reservatório dos meus dias?

 Eu me toco, exploro o meu corpo,  e não me sinto doente. Olho no espelho e me vejo tão jovem. Também não ando a pressentir coisa alguma. Nada. Tudo caminha no mesmo compasso há milhões de anos.  

 Mas, porém, todavia, contudo, nada pressinto e tudo  sei. Naturalmente sei.  Sei desse saber que sabe, sem necessitar de pressentimento. Sei contar os dias, os meses e os anos. Tão compridos os dias, os meses e os anos que gastei, apenas gastando, apenas pensando que não havia problema nenhum em gastar o que me sobrava tanto.

 Gastei em crônica melancolia. Uma melancolia que paralisou-me em séculos de extrema amargura. A amargura que nem a mim pertencia, que era apenas dos outros. Dos outros, os motivos para a amargura; não meus. Meus eram tão somente a grande inabilidade e as pequenas inabilidades para viver.  

 A inabilidade sempre presente  na vida que apenas vive,  até hoje vive,  simbolizada na oração que mandaram-me recitar, um dia. E eu, obediente recitei: “Obrigada meu Deus, pelos meus braços perfeitos, quando há tantos mutilados, pela minha voz que canta quando tantas emudeceram.”

 Emudeci quando cheguei na palavra “emudeceram”. Apenas meio metro de gente, encarando o padre, o chefe do rebanho, a coragem transformando a ovelhinha em leão, para  dizer, na cara nua, que a reza que ele me propunha era de um egoísmo constrangedor.  Que fosse rezada por outro, que por mim não seria.  
Que sentir precoce e puro será esse que me foi dado sem que eu pedisse?

  Meu Deus, tantos anos depois, ainda carrego comigo, esse tão puro:  como exibir o meu braço perfeito, sem afrontar o mutilado? Como usar a minha voz de taquara rachada em réquiem ao defunto mudo? Assim, apenas dizendo? Como se aquilo tudo fosse apenas uma interpretação shakespeareana, destituída de sentido?

 Eita: Não! Não! E não!   

 Eu sempre tive algo de Maria Madalena arrependida por existir neste mundo. E esse algo foi se impregnando em mim até me fazer gastar os dias. Irremediavelmente.

 Gastei, e assim foram gastos os meus dias: sem afrontar o mundo. E subitamente, afrontando.  Como o cachorro que toma um banho, de maneira tão dócil e  obediente, e quando menos se espera, arrepia o pelo e sai espirrando água para todos os lados. Espetacularmente.

 E agora me ocorre: em quantas saídas espetaculares gastei os meus dias? Quantas vezes, terei pensado que arrepiando o pêlo estava melhorando o mundo, quando tudo o que consegui obter foi apenas uma pocinha de lama?

 Os dias que gastei já não me voltam mais. Mal ou bem, feliz ou infeliz, participando ou excluindo, pertencendo ou não pertencendo, fazendo ou nada fazendo, gastei os meus dias de uma forma que me parece ter sido extremamente isto:  nem útil e nem fútil. Extremamente nada. 

 E mesmo agora, não sei o que fazer com o que não me  sobra mais. Com o parco e o minguado. Se não sabia o que fazer quando era perdulária dos meus entesourados dias, como saber o que fazer agora, com a indigência que me espreita pelas frestas  da parede e me diz assim: “ vai acabar”?

 Ivo me conhece tanto! E como é bom gastar os dias ao lado de alguém que nos conhece tanto. Pelo menos isso eu soube: gastar os dias ao lado de um homem que me conhece tanto.  Que bom que não gastei os meus dias ao lado dos Tarcísios Meiras que rondaram a minha vida. Todos tão fúteis!  Que bom que Deus me deu por marido esse homem de sangue quente e vermelho, esse homem  disposto a conhecer-me  tanto. Não apenas meu corpo, mas também a minha alma: Ivo me conhece tanto!

 Pois esse que me conhece tanto, disse-me assim, ontem, domingo, logo pela manhã:

 - Ana, diga-me uma coisa: como você está se sentindo?

 Eu nem estranho a pergunta tão amplificada. Ivo é homem de amplos horizontes. Mas, precavida, quis saber mais, antes de me aventurar a responder que o estômago estava bom e que a mucosa nem ardia.

 - Em que sentido? Eu digo. Já sabendo em que sentido ele dizia, e apenas ganhando tempo.

 - No sentido da palestra que você proferiu ontem (  sábado)? O fato de saber que fez bem a tantas pessoas, compartilhando o seu saber:  como você se sente?

 - Ah, sim, claro, eu me sinto bem, Ivo. Muito bem. – respondo, ligeiramente encabulada. Ivo ainda consegue me encabular.

 - Pois é, Ana. A vida tem esse sentido mágico: quando acabam as nossas ilusões, ainda podemos nos gastar pela ilusão dos outros. Veja eu: por que você pensa que eu não páro? Porque é extremamente importante sentir que estamos fazendo alguma diferença nesta vida. (....)

 O discurso filosófico está apenas começando. Temperado com tanto cuidado. Com tanta sabedoria. E o sol ainda nem apareceu, por trás do muro da nossa cozinha.  Mas, para nós dois,  parece estar entardecendo. Há uma penumbra de seis horas da tarde entre nós. Há sombras apenas pressentidas.

 Olho para ele e penso:  Meu Deus, como esse homem  me conhece bem. Eu estou com a mesma cara estampada todos os dias, mas ele olha dentro dos meus olhos e de lá extrai a  fórceps, a pepita de ouro mais pura, aquela que guardei a sete chaves.

 - Acha mesmo que fiz bem  a essas  pessoas, Ivo? Quantas delas vão reter o que lhes entreguei? Vou me espremendo contra a pia da cozinha, para desviar os meus olhos, do azul dos seus olhos.

 Pergunto porque tenho certeza de que, na verdade, ele sabe, que o maior bem que fiz, foi a mim mesma que fiz. Mas ele escapa, ligeiro como um bagre ensaboado, conjecturando com  raciocínio rápido:

 - Ana, o seu potencial é muito grande e Deus precisa distribuir entre as pessoas que sofrem, tudo o que você  aprendeu, tudo o que Deus lhe ensinou. Se eu soubesse metade do que você sabe, meu Deus! Eu só faria isso.    

 Mas se eu nem soube gastar os dias que me escorreram pelo meio dos dedos, e nem sei gastar os que ainda guardo na mão fechada e dura, como posso ensinar alguma coisa a alguém, se esse mínimo saber me foi negado?

 Apenas penso e nada digo. Recebo o dobro do que ele sabe, com uma resignação que chega a doer. Recebo, porque faz parte da minha vida receber tudo desse homem. E se ele diz que sei o dobro do que ele sabe, com seu diploma de médico, obtido na melhor faculdade do Paraná,  eu acredito que sei o dobro do que ele sabe, com o meu diploma de História, obtido na pior faculdade de São Paulo.

Ivo sabe que nada sei. Mas esse nada saber, inclui saber uma coisa. E essa coisa,  ele declara logo em seguida:

 - Ana, você é a mulher que tem-me ajudado a viver esta vida. Você é a mãe dos meus filhos. Mas acima de tudo, você é mulher de uma grande fibra. Queria dizer isso para você. E quero dizer que você não deve parar, agora que recomeçou. Que você não deve parar nunca mais. Que muita gente vai ser ajudada por suas  palavras, pelo seu exemplo, pelo seu mostrar o Caminho. Que você pode fazer em poucos anos o que deixou de fazer a vida toda. E que você sabe que pode contar sempre comigo.   

 -Então é, finalmente isso:  Gastar o que já não me sobra,  distribuindo o que falta para os outros,  na fartura dos seus dias (dos outros)?  

 Olho para ele  e nada falo: estou diante de um mestre e diante de um mestre, os discípulos se calam.

 Falo agora com vocês.

 Pois isso eu já tinha visto:  eu já tinha visto os jovens com o excesso do que me falta, e também já tinha visto o quanto lhes falta do acumulado que  me sobra. Eles bebem de mim - daquilo que lhes falta-;  mas eu não posso beber do que lhes sobra, porque o que lhes sobra é vida e vida é intransferível. Ninguém pode transferir para o outro alguns anos de vida, alguns meses de vida, alguns dias de vida.  E, ultimamente, um negócio estranho, tem-me acontecido: tem-me acontecido de voltar  para casa com uma  sede de vida. Eu que sempre fui meio morta, queria ganhar agora uns palminhos de vida.

 Ah, a vida! Sinto essa sede  todas as vezes em que sou excessivamente festejada, todas as vezes em que me chamam “senhora”, todas as vezes em que estendem um tapete vermelho para eu entrar, todas as vezes em que os jovens ficam tímidos diante de mim, e as mulheres me vêm como formadora de tendências.

Eu só quero formar uma tendência: amar a Deus sobre todas as coisas, ao próximo como a si mesmo, e aos animais ainda mais do que a nós mesmos.

Eu   quero apenas a lembrança do azul do céu,  no verde dos campos. Eu quero Adão e Eva nús, dando nomes a todos os animais, nomes escolhidos a dedo, com o coração. Como: Julião, Dudu, Toquinho, meus amados, meus queridos, que já não latem mais. Sinto saudades do Julião, do Dudu, do Toquinho. E, às vezes, fecho os olhos para sentí-los comigo. E choro de saudades. Confesso: choro pelos meus mortos cachorros que, enquanto viveram, não me foram cachorros, foram-me amigos.    

 Eis aqui  a maior injustiça que atribuo à  vida: quando valorizamos a relva verde e não os tapetes vermelhos, quando valorizamos o casebre na montanha e não o palácio na planície, quando valorizamos o olhar dos animais mais do que o brilho dos carros,  quando pensamos ter aprendido a viver abrindo-nos para a vida,  aí mesmo é que estamos   prontos para morrer. E morridos somos.

 Que Deus me conceda a primazia, porque sem o Ivo acho que nem saberei ser morrida.  Um dia.