MAIS UMA PERDA, MAIS UMA DOR.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

O melhor investimento é a vida, mas a sensação é de que amanhecemos todos mais pobres, mais carentes, mais necessitados da graça e da misericórdia de Deus sobre nós, os que ainda temos vida. A sensação é que durante a noite, o inimigo veio e cortou as nossas asas, deixando-nos cotocos, mutilados, olhando uns para os outros, consternados com a  própria mutilação, e com a mutilação coletiva.
 
Amanhecemos com a sensação de que não há nenhuma garantia de que veremos o amanhecer de amanhã, e por isso, precisamos valorizar o amanhecer de hoje, que nossos olhos há pouco, viram surgir no horizonte.
 
Mas o que significa essa frase “ precisamos valorizar o amanhecer de hoje? “ O que se faz quando se valoriza um amanhecer? Dá-se a ele um certificado de honra com as seguintes palavras : “ amanhecer eu lhe concedo a honra de ser este único amanhecer, este que não amanhecerá jamais”. É isso o que se faz?
 
O que se faz quando o sentimento de brevidade da vida fica impregnado  dentro de nós, e ainda assim, não sabemos o que processar com a informação que recebemos, antes que o fato se materialize e nos diga em realidade: “sim, a vossa vida é breve como um sopro”. O que se faz?
 
De nuvens que vêem e vão, nos céus da terra; de velas que acendem, e apagam aqui, ali, em todas as casas; de lírios, que exibem a  beleza e   murcham, em todos os jardins; de flores, que distribuem  perfume e morrem, em todos os campos; de crianças, jovens, adultos e velhos, que nascem, crescem, vivem por um breve tempo, e desaparecem, em todas as famílias da terra. Assim é a vida.
 
Enterrar um filho é a maior das injustiças que a vida pode fazer conosco.  Sempre que encontro um pai,  uma mãe, um ser gerador de vida, que acabou de perder o ser a quem  deu a vida, eu penso, com quanta tristeza- eu penso: “ seja malvindo ao clube. Ao clube dos que não podem mais apenas ser.”
 
É-nos negado esse único direito: o direito de apenas ser. Porque a morte de um filho, determina que jamais se possa viver essa única nossa vida. A morte de um filho é como uma sentença genésica, para que, dali em diante, viva-se mais a vida daquele que já não vive, do que a sua própria.
 
A morte de um filho nos impregna a tal ponto, que faz-nos assim:  faz-nos abdicar dos sabores que amamos em prol daqueles que ele amava. Ele amava lasanha? Pois então haverá de se comer por ele, um pedaço de lasanha, e por nós, uma porção de amargo fel. Lasanha misturada a fel, passa a ser a iguaria dos domingos. Na segunda, logo pela manhã, o pão com salsicha ao molho de tomate vermelho, nos sabe a sangue. E nós comemos.   E os sons? Quando se ouve “eu não quero ser prefeito, pode ser que eu seja eleito e alguém pode querer me assassinar”, tem-se a impressão de que Raul Seixas é o nosso melhor amigo, e que, de alguma forma, ele foi prefeito e o assassinaram,  aqueles malvados,  que não o queriam prefeito. E o tiro atingiu gente demais. O tiro atingiu uma juventude inteira, que não era transviada, era apenas encantada.  
 
A morte de um filho nos paralisa numa época. Como se o derradeiro trem tivesse andado, e nós tivéssemos perdido esse derradeiro que andou, condenados a ficar naquela mesma estação, durante primaveras, verões, outonos e invernos. Sempre frio e cinza em qualquer estação. Sempre sexta feira em todos os domingos. Sempre Paixão de Cristo em todo Natal. Sempre feliz ano velho a cada ano novo. Sempre Aleluia de Hendel. Sempre aniversário sem bolo. Sempre o mesmo presente: um mísero vaso de crisântemos. E sempre o seu - que os amigos já não se lembram de lembrar. 

Sempre tudo de um sempre igualmente sempre igual. Sempre preservando o patrimônio, o que sobrou: o túmulo, as fotos, um caderno, uma carteira, um par de meia (usada), vestígios de vida, que como retalhinhos, vamos costurando, uns aos outros.  Passamos a ser os guardiães da memória. Que só a memória vive em nós. Nós que somos a memória e não somos nós.  
 
Não há tréguas. Não há possibilidades. Não há alternativas. Não há atalhos. A cada manhã, retomamos o nosso triste caminho velho, com o sentimento de que, em algum lugar do céu, Deus nos olha com a compaixão dos tristes. Dos que nada puderam fazer para evitar-nos a dor inevitável. E ainda assim nos ama com amor irremediável.
 
Eis aí um mistério eu vos digo: passamos a amar ainda mais aquEle que sendo o Dono da Vida, nos ofereceu em cálice de amargura, a morte. Passamos a amar mais, e a compreender mais o que significa  o presente que o Cristo nos deu em palavras: “ a paz que excede todo entendimento.”
 
Temos a dor e temos essa espécie de paz. Temos a saudade e temos a paz. Temos a angústia e temos a paz. Temos a tristeza crônica dos irremediavelmente tristes, e temos a paz: a paz que excede todo entendimento.
 
Veja só: uma paz deve vir acompanhada de entendimento. Todo ser pensante deve ser capaz de entender a sua paz, de pegá-la nas mãos, de revirá-la por todos os lados, de observá-la por todos os ângulos e finalmente dizer: “isso é a paz.” Pois esse “isso” vem transbordando, nessa espécie de paz. Vem excedendo toda  capacidade de compreensão humana. No meio da desgraça da morte, Deus nos concede a graça de uma paz que excede todo entendimento.
 
Você não consegue entender o que digo? Pois se isso não é para ser entendido, é para ser vivido. E que Deus lhe permita nunca vivê-lo. Porque viver essa paz, é ser portador da síndrome do amargo fel, com a designação da abelha que sai pelo mundo distribuindo mel. Um paradoxo que,  mesmo sendo vivido, jamais poderá ser compreendido. 

Eu sou uma abelha que distribuo mel. De graça, comam  e bebam desse mel que tanto me foi cobrado. E que de graça, lhes ofereço.
 
Nesta manhã, eu quero apresentar os meus sentimentos aos familiares, e em especial ao Dr. Wilton Silva Longo e à dona Terezinha Longo, respectivamente, pai e avó do saudoso Dr. Wilton Silva Longo Filho, que na noite de ontem, aos 33 anos de idade,  deixou-nos a nós, os que ainda vivemos,  com a estranha sensação de que o mundo é o mesmo.  Mas nós ficamos menores. Mais carentes. Mais frágeis. Mais assustados. Mais perplexos. Mais necessitados da graça e da misericórdia de Deus.
 
Toko, Toquinho, que do céu lhe recebam os anjos e os amigos que você conquistou na terra, e agora são respeitáveis cidadãos do céu:  Eládio, Márcio, Paulo, Amarildo, Damásio, Rony, Claudinei, Gianechinni, Milton Frank, e os demais que seria impossível nomear, tão longa é a lista dos meninos que já foram.
 
Nós não fomos. Nós não fomos e ainda assim, já estamos indo. Sendo que alguns de nós, fomos, sem ter ido. Para esses últimos, o coração bate cansado, trôpego, melancólico, indeciso, mas ainda bate.
 
Estranhamente, ainda bate. 

* A foto mostra  Toquinho e a nossa querida Tatiane, irmã do Toquinho.