PIMENTA NO RABO

Na madrugada fria daquele domingo eu conheci o prato predileto do “figuraço” que era o irmão de minha mãe. O arroz de Suã.

Estava em Campanha, cidade onde nasceram meus pais, situada no sul de Minas. O inverno se apresentava com todo o rigor, escurecendo cedo e acordando a cidade toda molhada pela geada.

Campanha pode não ser conhecida, mas que ela é impar isso eu posso provar. Fundada lá pelos idos do ano 1700, provocada por uma corrida ao ouro abundante em suas terras, a cidade gerou e abrigou ilustres personagens da história:

Querem alguns exemplos? Então vamos lá: A Princesa Isabel morou lá por uns tempos, Carlota Joaquina, o Gastão de Orleans, mais conhecido como Conde D’Eu. (este era dono de terras e de minas de ouro).

O “conspirador” Inácio de Alvarenga Peixoto e Barbara Eliodora, E tem mais. O escritor Euclides da Cunha, Manoel Bandeira, José do Patrocínio. Querem mais? Maria Martins, considerada uma das artistas surrealista mais relevante do Planeta (êta modéstia), e até o Padre Vitor, um candidato aos altares da Igreja Católica, já que seu processo de canonização está no Vaticano.

Vital Brazil (com z mesmo), o grande cientista,nasceu lá. Campanha foi a primeira cidade do Brasil a ter um jornal dirigido por uma mulher que naquele tempo, já lutava pelos direitos do voto, do trabalho e da equiparação com os homens. E muito mais...

Gente! eu estava falando de Suã. Deixa-me explicar o que é: Essa palavra de pronuncia afrancesada é simplesmente a coluna cervical do suino, descarnada, cortada abiaxo um pouco do meio do porco para baixo até o começo do rabo.

Por ser de dificil de limpar sempre fica muita carne acumulada. O osso, tutano e essa carne que é o fino do negócio.

Eu ficava na imensa casa de meu avô. A diversão da rapaziada era beber, jogar sinuca ou ir para a Zona ou então, não sair de casa. Pode escolher.

Naquele sábado à tarde, eu fui assistente de cozinha do tio e de noite, fiquei esperando a hora de provar o tal Arroz de Suã. Ele só chegava de madrugada.

Nesta hora, nós, os meninos, também chegando da rua para o casarão do Vô Amador, vindo dos bares, dos campeonatos de sinuca ou das rodadas de cervejas.

Já Tio Dinho, dos carteados, do bar do Zezinho Ranca-Muro ou do barzinho fudido da Zona, no final da Chapada, conhecido como Álcool Íris.

Com esta história toda eu me esqueci de apresentar o meu Tio Dinho.

Dinho era o apelido. O seu nome era Hildebrando. Um homem alto e forte, rápido no raciocínio, portador de um grande desvio de septo nasal que fazia a sua respiração parecer uma locomotiva parada, esquentando as caldeiras. Ele nunca nos pegou em nossos delitos porque era sempre denunciado antes pela respiração.

Usava pentear o seu cabelo castanho muito fino todo para traz, sem repartido, cuidadosamente alisado pelo velho pente Flamengo, sempre guardado no bolso traseiro das calças de brim bege. O penteado agüentava chuva e vento graças ao excesso de “Glostora”, um fixador amarelo, com perfume duvidoso, vendido em potes.

Na boca, o seu inseparável cigarro Bervely sem filtro que amenizava o cheiro forte da cachaça com cerveja.

Enquanto esquentava o arroz de suã já pronto, aproveitava para nos contar suas histórias.

Naquela madrugada foi a do soldado do exército em Três Corações, conhecido como “Sapo”, seu amigo de farras, que em uma noite, “tirando serviço” no quartel, foi pego tendo relação com a égua “Sua Mãe”, patrimônio querido do Batalhão.

Reuniram a tropa, colocaram coitado na frente e passaram um sermão de uma hora.

O capitão irado parecia que ia expulsar o Sapo. Enfim, veio a punição para o arrasado soldado:

- Tratar da égua com ração e milho que foi descontado de seu soldo, além de servir capim fresco, dar banho e escovar a égua todo o dia por um interminável mês -.

E tem mais. Sem direito de dar uma “trepadinha”.

O meu tio neste momento dava uma boa gargalhada e nos olhava com os olhos pequenos, fechados pela quantidade de cachaça e se deliciava com a platéia que nem piscava.

Aí, o Tio abria o vidro de pimenta malagueta curtida no óleo que recendia na casa toda e proclamava: “Pimenta no rabo rapaziada”!

E emendava como uma oração, “este é um prato para se comer nas madrugadas frias. Mas se come também nas tardes quentes, nas manhãs nubladas e nas noites estreladas ou não. E como em um rito, cobria a Suã com o caldo oleoso da pimenta maldita, terminando o seu habitual e único discurso: É louco de bom essa comida mineira!

Agora, caso contado, eu passo a receita para vocês.

Vai precisar de: arroz, azeite, cebolas, alho, sal, a maldita pimenta e a bendita Suã.

A quantidade de arroz vai depender do número de convidados. Duas xícaras (cafezinho) de arroz cru para cada pessoa é o ideal. Da suã, quanto mais, melhor.

Separe os ossos da suã pelas articulações. Em uma panela grande, refogue no azeite a cebola picada, seis dentes de alho amassados, uma pimenta malagueta inteira e sal a gosto. Acrescente um litro de água, mexa e espere que o refogado comece a ferver. Prove o sal. Estando bom deixe como está. Faltando, coloque mais um pouco.

Não tente experimentar o sal depois de dar aquela talagada na cachaça ou na sua bebida preferida porque sempre vai parecer que falta tempero.

Coloque a suã para cozinhar, não precisa fritá-la e deixe cozinhando por 40 minutos, ou até a carne ficar macia e começar a soltar do osso. Apague o fogo.

Lave o arroz e coloque na panela junto com a suã.

Reacenda e abaixe o fogo, deixe cozinhar o arroz naquele caldo denso que cozinhou a Suã.

Neste ponto, é necessário observar se há água suficiente para o cozimento. Se necessário, coloque. Quando a água abaixar e aparecer o arroz todo furadinho pelo vapor, desligue, mantenha a panela tampada e chame a turma.

Deixe-me lembrar que é muito difícil comer a suã com talheres. É que a carne fica agarradinha como uma rabada. Então, é com as mãos, achando os buraquinhos, chupando de vagarinho, olhos fechados quase rezando. O prato fica divino.

Hortazevedo
Enviado por Hortazevedo em 30/09/2008
Código do texto: T1204460
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