O burguês e o cinoéfalo

Pois é. Agora a teoria dos cinocéfalos. De entrada, a palavra cinocéfalo quere dizer cabeça de cachorro. Cabeça de cachorro com miolos, boa massa cinzenta, mas nenhuma ideia produtiva.

Ora, na coisa de teorias não há como recorrer à ternura do exemplo. Dois fazendeiros, de Santa Luzia, outrora de Subugi e hoje tão simplesmente Santa Luzia, esmirrada por secas nordestinas. A coisa saiu num jornal diário de grande circulação. Com fotos bem nítidas.

Dois fazendeiros vizinhos mas diferentes. Um deles, suas mãos dignamente burguesas ou capitalistas, estendidas sobre um imenso feijoal, dizendo: “Venda-se bem o produto e faço nova plantação”. O outro, chapéu na mão, olhos apagados, mãos calejadas, que nem olhava para o seu feijoal reduzido a palha: “Deus não deu chuvas e o Estado não deu dinheiro”.

Claro! O cinocéfalo não é o burguês trabalhador, que fertilizou as terras secas do Sabugi. Cinocéfalo é o do chapéu na mão choramingando pelo dinheiro do Estado e pela chuva celestial. O burguês fez a terra produzir e com seu trabalho enaltece Deus e o Estado e garante o nosso pão da sobrevivência não falte em nossas mesas. Para o cinocéfalo, Deus e Estado são os culpados de tudo - não lhe deram dinheiro nem a água, no que tem a bênção dos pregadores sociais.

Agora as crônicas de cada um. O cinocéfalo herdou imensas terras e, com a ajuda dos filhos, as foi e vem cultivando na medida em que a água pingava do céu. Quanto ao burguês, faz cinco anos que deixou as fazendas gaúchas onde era peão trabalhador. Porém, tinha ambições. Tinha a ideia. Tinha a bênção do trabalho. Vem ao nordeste. Chega. Olha. Compra umas terras desmanteladas de um qualquer cinocéfalo. E haja cabeça e mãos! Ele mesmo faz o trator gemer noite e dia. As terras desmanteladas, secas e bravas, cedem lugar a uma verde e brilhante fazenda. Hoje, a sua terra tem água, tem riqueza, tem gado, tem poder. Produz feijão, até mais que uma vez por ano. Tem gado. Hoje, ele comanda um pequeno bando de trabalhadores, e, no seu geep ou carro de luxo, corre mares e fundos para garantir a saida do produto e conseguir o pão da sobrevivência, dele e do bando, que tem casa, pão na mesa e bom lazer. Seu gado engorda. O dinheiro cresce. Tem carro, tem mansão, tem alegria, paga a universidade dos filhos, filhos gera empregos, pão e riqueza, paga a quem trabalha para ele. Invejada já pelos sem-terra que as cobiçam. E, queira alguém informações, ajuda e conselhos práticos, ele os dá para quem, como ele, pretenda ascender à trabalhosa e laboriosa classe capitalista.

Este ano cultivou um imenso feijoal, que, mimosa e verde, é uma bênção de Deus e de Santa Luzia. E, se a venda for boa, fará nova plantação.

E o cinocéfalo? Lá está! O feijoal secou. Deus não lhe deu água. A Santa não lhe fez pingar a água dos céus. É de esperar que acabe por vender ao burguês as terras herdadas e passe a engrossar o bando ofensivo dos sem terra e... sem cabeça. Claro, um socialista - cinocéfalo também, não deixará de incriminar de roubo as mãos produtivas e endinheiradas do gaúcho, ontem sem nada e hoje grande senhor de terras.

Um renomado médico da nossa cidade foi quem aplicou o termo àqueles que acham, pensam e gritam que presidentes, ministros, governadores, o prefeito, o vereador, igreja devem e têm de lhe encher - encher, escreveu ele - as “gargantuescas mandíbulas” e as “pantagruélicas panças”. Um outro, o requintado poeta Euclides Vilar, recolhe em seu Almanaque uma teoria parecida. A teoria dos filantes ou dos pilhantes. Estes, mais brandos, limitam-se a filar ou pilhar de amigos e conhecidos - claro que merecem o dinheiro ganho com o trabalho - a cerveja, uma refeição, cigarros, caronas, e mais coisas. Noutra passagem, o mesmo Almanaque fala de uma outra teoria - a teoria dos chaleiras, coisa muito da capital. E descreve um chaleira, caninamente devoto do governador, que sendo o padre Walfredo, até lhe enchia a pantagruélica pança de bênçãos, comida e benefícios.