HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ NÃO LIMPA GAVETAS?
ANA MARIA RIBAS.  

Nesta manhã, a reflexão é de uma visão tão pura como dois mais dois. O resultado da soma é que complica o resultado. Esse da reflexão. Pode ser quatro, cinco, seis ou mil. Depende da sua resumição ou da sua amplidão. 
 
Eu sou uma resumida-amplificada. Assim: Se consigo continuar a viver,  de maneira apenas normal, mesmo não podendo amplificar a realidade, então posso dizer-me adaptada a um mundo vestido de normalidade. Nesse caso,  não sou um ser em evolução, sou um ser em estagnação.  Permaneço circunscrita por todos os lados, e ainda  faço parte do todo.
 
Tão bom fazer parte do todo: todos lhe saúdam  e você saúda a todos. Faço  feira, às quartas feiras,  e compro beterrabas com folhas. Não como ( do verbo comer) as folhas; como ( do verbo comer)  os talos: corto a cada 5 cm,  afervento, escorro, tempero com pouco shoyo e, com um tanto de imaginação e outro tanto de distração, sem olhar diretamente para o prato, tenho aspargos, de primeiríssima qualidade, a custo zero. Mas a lei da demanda exige que se guarde esse segredo a sete chaves. Perdi as seis e a sétima chave acabei de entregar para vocês. Façam bom proveito.
 
Pois então. No meio de um tema que estava exigindo de mim tão alta concentração, vieram-me os talos da beterraba. Vou repetir o primeiro parágrafo para que nos volte a concentração:
 
“Se consigo continuar a viver, de maneira apenas normal, mesmo não podendo amplificar a realidade, então posso dizer-me adaptada a um mundo vestido de normalidade.” Esse pensamento, você já conhecia. Agora vem o novo: “Mas se não posso amplificar a realidade, e se preciso dessa realidade amplificada para continuar a viver, de maneira apenas normal,  então é que me sinto anormalmente nua."
 
 Caso consiga o milagre de pertencer, será, no mínimo, superficial e recessivo. Venha como  óleo que  é, que  nós a receberemos como água que somos.
 
  Óleo sou.
 
 A vastidão que não me limita, impede-me de pertencer. Já a circunscrição que me contém no redondinho, oferece-me o colo.  Quero pertencer e não quero ser circunscrita; quero a vastidão e quero o colo.  Mas essas duas variáveis parecem estar repelindo qualquer provável combinação. E mesmo eu, fico dividida.  E mesmo eu, amanheço os dias querendo ser outra, e não essa. E mesmo eu, anoiteço as noites,  para fugir dessa que sou pelas manhãs. Ou não sou.
 
Ser ou não ser, eis a questão.
 
Penso que o mundo deveria abraçar todas as espécies, dentro da espécie humana: a espécie feliz, a espécie conformada, a espécie socializada, a espécie nativa, a espécie não civilizada, a espécie que sonha acordada e a espécie que dorme sem sonhar. E também todas as espécies, ainda não catalogadas. Penso que o mundo deveria abrir um espaço maior para a vastidão das espécies.
 
Ontem, fiz uma limpeza nas gavetas do escritório. A compulsão tomou-me como parte do vendaval, que por aqui passou, destruindo tudo. Mas esse mínimo fazer fez-me tocar nas coisas vestidas, eu que, acostumadamente, visto-me de nuas abstrações.
 
Na hora da limpeza, essa, senti que os dois mundos se tocaram. Senti como se a Madonna de Leonardo, vestida, estivesse encostando na Madona de Lourdes Maria, nua. E as duas se beijavam. Respeitosamente,  as duas se beijavam.
 
Foi tão bom. Quero dizer, no meio do tão ruim do vendaval,  foi tão bom. Balde, vassoura, pano, rodo, avental, todo um arsenal para limpar salas, banheiros, quartos e cozinha: o que é vestido se cobre de pó. Mas o que me propus limpar,  em compulsão de limpeza, foram apenas gavetas.
 
Gavetas contendo papéis. Revirei  minuciosamente os conteúdos, cataloguei, amassei, rasguei. Nenhum papel do tesouro nacional, apenas os papéis do meu próprio tesouro. O contra-cheque de cada mês, as contas de água, luz e telefone quitadas, as faturas do cartão de crédito, os talões de cheques usados,  um envelope para se fazer uma doação a uma instituição que faz o bem, - e envia antecipadamente uma caneta por conta do bem que se há de fazer-  eu que faço o mal de reter a caneta e não enviar a doação. O mal não me parece tão grande, porque a intenção é fazê-lo, mas torna-se enorme, porque dia após dia, a intenção vai para um lado e a ação segue para o outro. Detesto bancos.
 
Mas contabilizo a vida e pago as minhas contas: eis aí um jeito de pertencer aos que se vestem? Ou não?
 
Estão vendo? Já não sei. Há tanto tempo deixei o mundo, tão nua em pêlo, que já não sei como é ser vestida com tanta roupa.
 
 Os papéis. Os papéis são apenas um detalhe nessa história de  gavetas,  mas um detalhe extremamente importante. Não sou contraventora para lavar papéis. Então para quê a água, para quê o rodo, para quê a vassoura, para quê o sabão?
 
 Para  compor o cenário da domesticidade dentro de mim. O  mundo precisa, cada vez mais de cenários domésticos.  
 
Decido-me pela ordem: a ordem é universal.  A ordem que me falta internamente e que eu procuro alcançar, apenas alcançando, com uma escada desdobrável, em dias de vendaval.  Tenho pastas – várias-  para arquivar um papel que é diferente de outro papel. Arquivo todos.   
 
Mas eu sou a mesma, em todos os tipos de papéis, por isso não consigo me arquivar. Não consigo dizer,  finalmente: esta pasta é minha.  Quando vou para a cozinha, faço lasanha com estas mãos que escrevem, e no meio da lasanha, bem no meio, quando a água alcança o ponto de fervura, e a massa parece ter vida própria, minha própria vida gira lentamente em seu próprio eixo, e sem poder conter o impulso longitudinal, em direção à vastidão, corre! Pelada, com a mão no bolso.
 
Nalva termina a lasanha, e eu como. Apenas como.