SEU SANTINHO, A LEITOA E O COLESTEROL

Seu Santinho tinha na época 80 anos. Era magro, alto e tinha a pele tão curtida pelo sol que parecia o couro da sela de sua montaria, de tal forma que não dava para saber se ele era moreno, branco ou negro.

Levantava sempre às quatro da manhã para a lida no curral. Ágil, com uma força impressionante, não deixava ninguém imaginar a sua idade. Acredito que não tirava o chapéu "Cury" de feltro cinza, nem para dormir ou tomar banho.

A “fazenda” do seu Santinho era se não me engano, para o lado de Sucanga ou Tomba Homem, região de Malacacheta no norte de Minas.

O lugar quase ermo, afastado do progresso com seu cheiro de terra de curral, canto dos pássaros e o silêncio barulhento do riacho, dos ventos e das noites estreladas.

Tinha na trilha da entrada da fazenda, uma porteira caída e no morrinho onde a vista batia primeiro, ficava o curral, com os mourões amarrados com cipó, abraçava sem jeito no aparte, as 15 vaquinhas eternamente magras.

Na baixada do morro, ao lado do córrego, ficava a casinha caiada com barro branco de janelas azuis, com a cozinha do lado de fora e muito, mas muito mesmo, carrapato, carrapicho, picão e aça-peixe.

Além disso, Seu Santinho tinha também duas éguas, algumas galinhas e uns porquinhos criados soltos.

Conversava pouco, mas tinha na “ponta da língua” o nome de todos os bichos que habitavam com ele no seu mundo.

Às dez horas da manhã o almoço era servido. Na mesa da varanda, arroz, feijão, dois a três tipos de carne (porco, boi e galinha) tudo servido nas panelas, fervendo, retiradas com um pano alvo do fogão de lenha e, nenhuma verdura.

Junto com a comida vinha uma panela funda de ferro, com um arame trançado como alça e três pezinhos para apoio, cheia até a borda de um líquido incolor, pesado e esfumaçante.

Seu prato era uma bacia de ágate, que enchia sem cerimônia de arroz, feijão, escolhia a carne que queria e com uma concha de ferro, afogava a comida com o líquido fervente da panela preta, fumegante e com os pezinhos.

Quando chegou a minha vez de servir eu quiz agradar e fiz como ele. Arroz, feijão uma carne de panela que há mais de um mês morava escondida na lata, mergulhada na banha de porco, o caldo quente que escorregou para dentro do meu prato fundo, um pires se comparado com a gamela de Seu Santinho.

Na primeira colherada, na casa não tinha garfo, percebi na hora que o líquido escaldante era gordura de porco derretida. Para pagar a minha curiosidade, "tomei" o almoço e passei mal uns dois dias, enjoado pela gordura líquida.

Seu Santinho sem se preocupar comigo, comia sorridente a sua “sopa” de colher. Quando deu uma pausa, eu muito preocupado com a ingestão de tanta gordura pelo simpático dono da casa, perguntei:

Seu Santinho? O senhor já ouvia falar de colesterol?

Ele franziu o cenho, rodeou com um olhar toda a aba da parte da frente do seu chapéu de feltro, fincado em sua cabeça, parecendo que nasceu com ele.

Colocou a mão no queixo e respondeu tomando ar, abrindo a boca, mostrando os seus todos dentes que nunca visitaram um dentista, agora pequenos por terem sidos abrasados pelo tempo e disse sériio:

Cole! Cole! E repetiu mais uma vez.

Fez silencio, parecendo estar pensando e finalmente, falou rápido, ao mesmo tempo em que servia-se de um enorme pedaço de geléia de mocotó, feita lá.

Sei não sô! Serve pra que?

Foi lá que eu comi uma leitoazinha à pururuca, fantástica. Pode ser que já tenha comido igual, melhor nunca. Sua mulher Dona Conceição fazia assim: Cortava em pedaços a leitoa caipira, criada solta, comendo mandioca, milho, abóbora, terra capim, bosta e o que encontrasse pela frente.

A carne tinha um sabor de caça e carregava consigo pouco gordura. Os pedaços ficavam no tempero de sal com alho e cachaça por um dia e uma noite. De vez em quando D. Conceição ia à gamela da cozinha e virava as carnes para o tempero penetrar.

Em um panelão que cabiam todos os pedaços, refogava com água, sal, cebola, alho, mais os temperos que estavam marinando a carne, acrescentando temperos verdes a gosto e a pimenta malagueta.

Deixava cozinhar naquele tempero, “moquear” como falava, até que a pele ficasse bem mole.

Retirava e escorria bem, deixando secar mesmo.

Quando chegava a hora de fritar, bem pertinho da hora do almoço, D. Conceição esquentava uma boa quantidade (o bastante para mergulhar o pedaço a ser frito) de gordura de porco até ficar fervente, mas bem quente mesmo.

Frite pedaço por pedaço. Neste momento é preciso tomar cuidado porque a gordura espirra e pode queimar feio.

Para saber se a gordura está no ponto D. Conceição jogava na panela com a gordura, um fósforo sem riscar. Quando o fósforo acendia dentro da gordura, ela estava no ponto para a fritura.

Com o pedaço fritando, (o tempo é bem curtinho), espere a pele pururucar, virando com um garfo a carne dentro da panela.

Ela (a pele) pele deve ficar crocante.

É só servir. Lembro ainda do sabor do alho na carne, o crocrar da pele. É prazer inigualável.

A propósito, nunca consegui explicar ao Seu Santinho para que servia o tal de Colesteral.