Meu Reino por um Sorvete - PARTE 1

Por Elizabeth Misciasci

Mesmo com os vidros do carro fechados e o som ligado, era possível ouvir as vozes graves e altas que em coro bradavam ao redor.

-"Para! Para! Para"!

Impossível não se atentar aos semblantes dos companheiros de espera, pois aparentavam estarem comungando dos mesmos sentimentos diante daquela situação.

A imensa barreira que se formou à frente, impedia que qualquer um que estivesse parado mais atrás, pudesse perceber o que estava acontecendo. Os mais próximos do evento, reproduziam o “para, para, para” que uma só voz, gritava repetidamente. Assim, a passa-passa do “para para para” se alastrava a outros, se reduplicando.

Nem tudo seria sofrimento, afinal, não poderia se dizer que haveriam seções de torturas provocadas pelo calor, pois a tarde estava fresca, a que pelo menos aliviaria a permanência aparentemente nada breve, em meio às quatro filas da imensa via de acesso que interrompia o livre trajeto.

Tentar fazer qualquer contato pelo celular se tornara missão impossível, os aparelhos avisavam “sem serviço”... Pronto. Definido a situação de todos os presentes, a única saída era digerir a realidade momentânea e se conformar, pois se houvesse serviço rotineiro e acessível de táxi aéreo, não funcionária naquelas circunstancias, nem tão pouco existiria pista de pouso o bastante.

Com a chegada de um helicóptero, pude prever que os compromissos inadiáveis, seria a partir daquele momento, uma negativa irreversível em minhas finanças. Não percebia que estava entrando involuntariamente em estado de introspecção, (pra não dizer desespero) era o meu eu se autoquestionando de forma interminável e confusa.

-Se São Paulo é o mais rico e produtivo estado brasileiro, que sabemos serem as cifras que atestam a vocação dos trabalhadores para a procura da cidade, procura esta com finalidade do progresso pessoal e familiar, onde estariam os eleitos, chamados representantes do povo, para providenciar a liberação rápida da movimentada via de acesso? O já caótico transito, diante da condição de estar literalmente parado, transformara-se em fato inenarrável.

Não havia como ignorar o todo. A ambulância, subindo e descendo o canteiro, na ânsia de atravessar, chacoalhava e trepidava no asfalto, reproduzindo a pressa somada a aflição do motorista. Minha preocupação com o “suposto provável” acidente do “para para para” a frente, agora se multiplicava. Como estaria o coitado do paciente da ambulância? Passei uns longos minutos, imaginando... E se a pobre pessoa tivesse fraturas, estaria sofrendo ainda mais com tanto balanço, e assim eu também sofria, mesmo que solitária e antecipadamente.

O helicóptero já se afastava, e cada vez mais, eu me perguntava:

–Onde estariam os que deveriam resolver o imenso transtorno? -Será que estariam ocupados com problemas pessoais, ou preocupados com todas as atenções voltadas para aquilo tudo?

Com uma dose de intuição e alguma experiência, cheguei à conclusão que ocupados e preocupados deveriam estar e muito, mas certamente não seria para com os problemas da população... Afinal, São Paulo é uma cidade que se renova dia a dia, ao longo de suas avenidas, viaduto e com as constantes multiplicações dos grandes edifícios certamente necessita-se de total empenho em arrecadações, principalmente em ano de eleições. Bem, mas isso não é assunto regional, aliás, as origens destes tipos de preocupações, devem vir ‘de cima’, afinal os impostos existentes, precisam ser fiscalizados em todo o País.

Fiscalização esta, que exige sempre esmero, dedicação e total competência, tanto dos órgãos fiscalizadores, como e principalmente dos fiscais. Pois, para que o povo não se torne inadimplente nem se percam as informações, é necessário constante atenção! -Afinal, como se pode garantir o enchimento dos cofres públicos, se não houver trabalho árduo e preciso para ao final objetivo? (Diga-se de passagem, que se tratando de credor, nossos governantes encontram os melhores profissionais do ramo. Exímios funcionários, donos da competência plena, que se flagrados em ação, despertaria inveja ao FBI. Mérito pela dedicação e rapidez em localizar e “punir” os devedores, principalmente em ano político).

Mas o povo não pode nada! Mesmo porque a garantia dos direitos, quase sempre, são apenas teorias.

Tente marcar uma hora com um político, um assessor ou pessoa com poder e autoridade para resolver, ou ajudar, por exemplo, o seu IPTU atrasado. A grande maioria, nem saberá da sua investida, muito provavelmente, terá breve atenção da atendente de balcão de um departamento qualquer, menos o que estiver procurando. Com muita sorte, poderá receber um pouco de afeto, da estagiaria da assistente da secretária Junior. Talvez, ela não tenha sido contagiada ainda, pelo vírus da má vontade. E se assim for, ela lhe dará a esperança de um retorno... Mas não se iluda! Nem sempre, a esperança é a última que morre...

-“Para para para”... Estávamos eu com meus longos e confusos pensamentos novamente. Também pudera, pra quem não saia do lugar, sem tempo pra chegar ao meu destino, não restava o que fazer só pensar ao ouvindo o passa-passa do “para para para”.

Tempo... Talvez seja esta uma das razões de um latente abandono social:- A falta de tempo!

Obviamente estas eram as informações que o meu eu buscava! Depois daquela gritaria de para para para e diante dos fatos, deduzi que talvez não fosse um acidente, quem sabe não se tratava de mais algum “assalto rotineiro no farol”... - Por presumir, eu ia me revoltando com aquela barbaridade, mas qual é o brasileiro que não se revolta com tanta miséria e conseqüente violência, principalmente quando percebe que as soluções nunca são colocadas em pratica, mas os carnês e impostos são pontuais.

Com muita sede, mais sem direito de ir e vir, literalmente a canto algum, deu vazão pra observação, e assim, passei os olhos ao meu redor. Pude constatar o desgaste geral, aquela inércia permanente, era visível nos semblantes cansados dos companheiros de jornada. As fisionomias demonstravam que meus ‘parceiros’ estavam tomados de péssimos sentimentos diante das circunstancias, enquanto eu delirava na miragem de um sorveteiro.

É sempre assim... “Quando não se quer, se encontra aos montes”...

Após a espera de quase duas horas, entre o vario de pensamentos, ao som de fundo das mais variadas buzinas, e muita sede, finalmente, tive a breve sensação do efeito de um alvará de soltura, em direção a liberdade. Era o transito, que muito lentamente começava a fluir.

Tanto tempo parada, com sede, calor, pensando bobagens, sem honrar meu compromisso, sem dar ao menos uma satisfação, preocupada com o infeliz da ambulância, e supondo o que teria acontecido à frente, ia despertando em mim, uma terrível sensação de fracasso.

Suspirando, exclamei chorosa em voz alta: -"Daria meu reino por um sorvete"!

Muito chateada pelas perdas e certeiros prejuízos, já seguindo com o propósito de fazer a conversão e retornar, pude então perceber o que havia ocorrido e parado o transito por quase duas horas...

Com notório puxa-saquismo, abraçado a um cidadão o então ‘almofadinha’ com a latinha na mão, erguendo comemorava, o feito e a precisão. Brindando em gargalhada, almofadinha e candidato patrão, foi aí que então nasceu, o melo da eleição. Rindo muito, relembravam a tão ousada ação. A maldade relembrada, era pura diversão, palhaçada planejada, sem qualquer preocupação, já que a última tomada foi só minha... E sem perdão.

Enquanto o que mandava, gritava de cima do andaime, o tal Tonhão de dentro da cabine, operava a máquina e pingava de suor. Uma vez ou outra ele respondia, porém a concentração do Tonhão estava mesmo na alavanca. Impossível passar despercebidamente, não pelo guindaste móvel, nem tão pouco pelos gritos do mandante, que já era familiar aos meus ouvidos, mas sim, pela cena hilária e sem dúvidas, inesquecível!

Por bem pouco, não cedi ao sentimento, mas foi necessário tapar a boca com mão. Aquele momento foi de autopunição. Ainda creio que a educação, calou a iracúndia, que de mim se apossou, pois queria muito abrir o vidro e soltar três palavrinhas... Afrontosas sim, mas apenas três palavrinhas... No entanto, as engoli, e assisti um pouco do espetáculo, assim como todos os meus anônimos e desconhecidos “companheiros” de estrada. Porém, não imaginava o que ainda me custaria à pausa forçada sem opção.

Enquanto isso, o mandante gritava para, para, para e segurando firme a alavanca, Tonhão suava.

-“Para para para, mas pro meio, pra direita, um milímetro pra cima, tomba um pouco o lado esquerdo. Aí Tonhão! Para, para para! Pode parar nessa posição. O ‘almofadinha no pisante lá no térreo’ fez sinal de positivo! Agora sim! Você pode mandar a dona comadre assistir, e não te preocupa que ‘não vai fazer feio’ te dou minha palavra”.

Olhando com firmeza e seriedade para o mandante que gritava, Tonhão nada respondeu, secando a testa que suava.

Entre essas e outras, foi à vez do ‘tal almofadinha’ eufórico gritar: - “Para para, para! Valeu! Vamos mudar que a tomada agora é cem por cento do povão”.

Eu não poderia, nem tão pouco conseguiria esquecer “tão meigas e prosperas considerações”. Ainda consigo sentir o calor que subiu pelo meu corpo, esquentando tanto, que parecia queimar, marcando meu rosto de duradouro rubro. Sem dúvida, aquela tarde, perpetuou. Penso que pela sede e sem sorvete, absorvi sózinha o comentado...

O tamanho nervosismo, só me atrapalhava, foi quando enfim descobri, o que sem noção eu cantava:

"A palavra ganhou vida, não sei nem qual a razão, o que seria de todos, dividido na nação, como que profanada, desviou-se do mundão, a praga que foi rogada veio em minha direção, uma “profunda tomada”... Esta sem repatição. Com a profunda tomada que herdei, sem ter razão, contemplada cem por cento, com a tomada do povão".

Eu cantarolava e “o almofadinha” falava.

Sensação de dever cumprido! Plenamente satisfeito, demonstrava sorridente, o tal “almofadinha estufada,” que sem se intimidar, apenas determinava:- “Vai pessoal, desarmando acampamento. Agora, vamos ‘rodar’ do outro lado da pista assim aproveitamos e em mais uma hora e meia, a gente roda a cena final, aproveitando já faremos umas chamadas para o próximo horário eleitoral”...

-“Para para para! Ô Tonhão... Faz assim não! Se insistir em colocar esse painel torto, o fundo do cenário ‘não vai dá samba’ cara... Olha a ‘responsa’ isso vai pro ar”...

continuação na próxima página

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