O dia do mal

Hoje o dia amanheceu igual. O sol nasceu como sempre. O galo não cantou porque não se pode cria-los na cidade. A TV ligou no horário programado, no jornal matutino de sempre, com as mesmas notícias previsíveis. No final do noticiário, um padre ou um pastor abençoou o dia. De quem e por quê? Quem ouviu? Se ouviu, fingiu que não ouviu. Se viu, fingiu que não viu.

Hoje o dia amanheceu igualzinho aos outros. Alguns coaram seu café – não sei como alguém consegue beber café de manhã? Outros, pão com chá mate ou leite. Poucos, mamão, requeijão e “croissant”. Muitos, nada. Alguns saíram para o trabalho ou para a escola de carro – trabalhar ou estudar só por obrigação. Outros, de bicicleta, ônibus ou trem. Poucos com limusine e chofer. Muitos, à pé.

Igualzinho, mas nem tanto. Era o dia em que se concretizavam as profecias. O holocausto estava instalado. Nada parecido com as visões de São João. Nenhum 666 na testa de ninguém. Nenhum dragão arrastando as estrelas do céu. Muito menos com a de Nostradamus, com pestes negras assolando o mundo ou terceiras guerras mundiais. Ou fomes, enchentes e fogueiras devastadoras. Nenhum ET – para a alegria dos ufólogos – pousando com seus discos voadores brilhantes e suas armas laser, atirando e destruindo a humanidade e conquistando a planeta Terra.

O holocausto estava instalado de uma forma que nem o pior dos pesadelos poderia se assemelhar. Todas as pessoas e coisas estavam sendo julgadas e condenadas igualmente. Desde o mais bonito ao mais feio. Do mais esperto ao mais medíocre. Do mais magro ao mais gordo. Do maior filósofo ao mais ignorante. Do mais religioso ao mais ateu. Do pisado ao pisador. Da barata ao manga-larga.

O dia estava igual, exceto que o mal começava a derreter as pessoas de dentro para fora. Olhando só com os olhos não dava para ver. Tinha que olhar com o coração e nos olhos. Não tive coragem de olhar no espelho. O mal estava derretendo as pessoas.

Como qualquer outro dia, o patrão olhava para seu empregado como se fosse seu dono e vendo nele apenas lucro. Ele começou a derreter e gritava por socorro. A vingança tinha chegado ao empregado, que vibrava. Ele também começou a derreter. O pedestre derretia porque tinha ódio do motorista, que por sua vez, tinha ódio do motoqueiro, que tinha ódio do pedestre. E todos começaram a derreter juntos na avenida principal. Corria pela sarjeta um caldo mal. Nas escolas, imperavam a indisciplina e o descaso. Os professores derretiam de tanto ódio que sentiam. Os alunos sentiam prazer de ver aquela cena. Também começaram a derreter. Todos derretendo e se misturando numa massa só. Ainda bem que tudo corria para o ralo.

Prédios se esfacelavam e tombavam, pontes e viadutos também. Tudo o que foi construído ilicitamente caía e derretia. Não sobrava pedra sobre pedra. Tudo o que tinha sido tocado pelo homem estava se transformando em mingau. Pouca coisa ficou intocada. Talvez tenha acontecido isto com Marte.

Não sentia mais as minhas pernas. Acho que também estava derretendo. Que ódio! Quase não consigo mais escrever só me restaram dois dedos e um cérebro se deteriorando. Nem eu vou me salvar? Eu tive tanta fé e rezei tanto. Ajudei tantas pessoas. Dei tantas esmolas. Ajudei em bingos de igrejas e escolas. Ajudei uma senhora a atravessar a rua. Evitei carne gorda. Dei presentes para os meus afilhados. Por que eu também?

O cheiro do enxofre se instalou no nosso mundo.

Fim.

Wilian Aparecido da Cruz
Enviado por Wilian Aparecido da Cruz em 10/03/2006
Reeditado em 11/03/2006
Código do texto: T121388