SE VOCÊ FÔR, NÃO SE ESQUEÇA DE VOLTAR.
ANA BERNARDELLI.

Há alguns anos, eu estava em Nova York e tinha o dia livre. Tomei o café da manhã, no hotel, e fui caminhar no Central Park, que ficava bem próximo dalí. Quando regressei, por volta das 16,00 horas, uma das mesas ainda estava ocupada desde as 8,00 horas da manhã: uma mulher dormia, debruçada sobre ela. Na verdade, ela não só dormia: Ela roncava, balançando cristais

No ímpeto do momento, sem me lembrar da cultura da individualidade, largamente difundida na “Capital da Liberdade”, solicitei ao garçon, para que verificasse o que acontecia ali. Mas a equipe de garçons, que servira o café da manhã, já havia sido trocada. Consegui, enfim saber o que me interessava: essa era a rotina acostumada daquela velha milionária excêntrica. Ela residia no hotel e passava o restante do dia, comendo, dormindo, acordando, comendo, dormindo, acordando, indefinidamente, até que a noite chegasse, e ela fosse conduzida ao quarto, para, enfim, dormir.

Naquele momento, tentei realizar esse exercício de transferência tão necessário, quando se está em terra estranha: Compreender a mulher, sua solidão, sua rotina de milionária, para, de certa forma, amenizar a estranheza que aquela atitude me causava. Morando num dos metros quadrados mais caros do mundo, coberta de jóias, com as unhas muito vermelhas, a mulher, debruçada sobre a mesa, dormia o sono dos indigentes.

Em qualquer parte do mundo um velho abandonado é frágil, mas em Nova York, a fragilidade vinha revestida de poder. De tempos em tempos, o garçon, vestido de pingüim, aproximava-se, cerimonioso, trocava a água, o café, e de repente, sem nenhuma cerimônia, abria a bolsa da mulher, dava-lhe um comprimido que ela engolia, obediente, num gorgolejar de ganso, e, passado aquele momento, de breve lucidez, ela submergia, novamente, no mesmo sono.

No ângulo em que me sentara, eu podia vê-la. De início, como uma caricatura de mal gosto, a observava, com fixidez de espanto. De quando em quando, levantava molemente a cabeça, olhava em volta, sem nenhum susto ou pudor, para logo depois, mergulhar de novo sobre a mesa, num mergulho de morte. Tudo transcorrendo num clima de perfeita normalidade.

Ao som de uma música suave, que não era nenhum bolero ou tango, mas tinha lá a sua afinidade sonora, o ambiente poderia lembrar, talvez, um cabaré da velha Argentina. O garçon se movendo, acostumado, por entre o brilho do latão e a transparência dos cristais. A velhinha dormindo sobre a mesa, também acostumada. E eu ali, tentando me desvencilhar de sentimentos que não podiam ser meus.

Em evidência, confrontavam-se naquele momento, duas situações antagônicas: o direito que a cultura americana conferia à velha anciã de dormir, roncar e babar sobre a mesa, garantindo-lhe a indiferença coletiva, a ausência de pena ou de pesar, chocando-se com o meu direito, o direito desta outra América, perplexa de sentimentos e de compaixão, devidamente representada por mim.

Sentei-me ao lado, pedi um café, abri um livro e fiquei, como figurante, acompanhando com certa reverência aquela cena, que parecia ter sido concebida por algum diretor de cinema americano.

Nem a imponência arquitetônica de Manhatan, nem a tecnologia americana, nem a diversidade cultural, nem o luxo de Madison Square, nem a agitação da 5ª Avenida, nem as pessoas amalucadas que cruzaram comigo, nem as luzes da Broadway, nada marcou-me mais do que aquilo. De uma certa maneira, eu me introduzi naquele cenário, participando do espetáculo, tornando-me íntima dos protagonistas: Éramos três!

Éramos três intérpretes de uma dialética silenciosa, cujo diálogo mudo beirava a fantasia de um hospício, e nos permitia a familiaridade simulada, a intimidade fingida. Nesse estar em casa, sem estar em casa, poderíamos olhar de frente, uns para os outros, poderíamos tirar o sapato e coçar o pé, de maneira quase íntima, sem nos reconhecermos jamais, pelo simples motivo de que nunca nos víramos antes, e nunca jamais nos veríamos depois.

Naquele ambiente luxuoso, tudo era mesmo postiço. Como a falsa leveza com que eu me sentava no sofá, de pernas cruzadas, a tudo assistindo, o garçon se movia, elegante, pelo salão, em tudo contribuindo, e a velha dormia relaxada, sobre a mesa, a nada compreendendo.

Por razões que nunca saberíamos explicar, e nem seria preciso, nós nos estranharíamos pelo século dos séculos e, ainda assim seríamos cúmplices e reféns da mesma miséria, vencidos pela mesmas limitações. A indigência do homem passeava despudorada naquele salão, mostrava a sua cara mais exótica, vingava-se do luxo que havia à nossa volta, naquele saguão: uma turista melancólica, um mordomo frio e eficiente e uma milionária decadente, compartilhavam o mesmo bule de café amanhecido há séculos, com o gosto da solidão, tristeza e amargura.

Naquele momento, “flashs” da infância passaram como um raio pela minha memória, quando a voz da minha mãe me dizia, bem baixinho: “Menina, não olhe, não seja curiosa... é feio!”

Mas, por ser tarde demais, eu olhei. Eu olhei e vi, como a vida toda tenho olhado e visto, o que muitos não conseguem ver. E não apenas isso: eu não somente vi, mas também compreendi, como jamais gostaria de compreender.

Enigmas permaneciam indecifraváveis dentro de mim. Ainda assim eu soube. De alguma maneira, eu soube que ali estava um espetáculo mais trágico, mais triste, e mais real do que “A Bela e a Fera” , que estava sendo levado pela Broadway, a poucas quadras do hotel. De alguma maneira, eu descobri que aquela mulher não tinha marido, não tinha filhos, não tinha netos, ninguém com quem pudesse compartilhar uma xícara de café e uma história. Descobri que, fossem quais fossem, os laços que ela houvesse criado em sua trajetória, esses laços tinham-se rompido ao longo da vida, e o que lhe restava agora, era apenas, a miséria de uma gorda conta bancária e um anônimo quarto de hotel. Fossem quais fossem os relacionamentos que ela construíra ao longo do tempo, haviam-se evaporado, não lhe restando, nem ao menos, raízes estáveis que sustentassem uma casa no campo, um jardinzinho saudando a chegada da primavera, um cãozinho que, abanando o rabo, lambesse seu rosto a cada manhã, um santuário só seu, para abrigar a galeria dos sonhos destruídos, as fotos, os livros, as pequenas coisas que dão à vida um sentido tribal sagrado.

De alguma maneira eu olhei, e no segundo seguinte vi tudo isso, sem conseguir deixar de ver menos do que isso.

Quando me levantei dalí, eu o fiz com uma certeza: A rotina, seja ela em Nova York, ao lado do Central Park, ou no Brasil, na minha pequena Cruzeiro do Oeste, se não for acompanhada de objetivos significativos e eternos, é sempre um balé grosseiro, desumanizado, quase virtual.

Olhando para aquela mulher, como quem cava fundo na terra, acrescentei um conceito novo aos valores da vida: nenhum homem consegue prescindir, totalmente, da rotina, mas todo homem pode e deve preencher a rotina com escolhas significativas e duráveis.

Naquele fim de tarde, em Nova York, consegui formular, uma proposição definitiva sobre a mordomia do homem na administração do tempo, e da vida: É preciso dar à rotina objetivos significativos e transcedentais. É preciso fortalecer os relacionamentos, criando vínculos, cujos elos possam merecer a chama ardente de um coração apaixonado. Mas, se não for possível a paixão, pelo menos, que eles mereçam a obstinação de um guerreiro que não vacila, que compreende o amor à sua gente, como o tesouro mais precioso a ser preservado.

É preciso ver Deus refletido no espelho, do outro lado do salão, enquanto nos movemos nesta terra, com a característica mais sublime, dos viajores celestiais: A característica da fé que considera fundamental o momento de regressar. Porque a morte espiritual e a concupiscência do mundo, são parceiros da inconsciência, de quem passa a vida dormindo, sem saber como encontrar o caminho de volta para a casa.

Naquela tarde, em Nova York, desejei encontrar, ainda mais rapidamente, o caminho de volta para casa. Caminhei até a calçada, respirei fundo, e olhei para o céu...

Ana Maria, New York, 1996.