A BENGALA QUE ERA DO MEU PAI.
ANA MARIA RIBAS.



As coisas que têm um valor sentimental podem trazer alegria, conforto e mesmo desconforto. Um dos três sentimentos ou os três alternados. Sentimentos que nunca podem ser verdadeiramente puros: porque a saudade pode manchá-los. E nesse caso, os conservamos com manchas.

As coisas que têm um valor sentimental pulsam para além dos átomos de que são feitas. Prescindem do valor, da beleza e da utilidade. Delas já não se cobra uma função: existem apenas.

Como a bengala que foi do meu pai, servindo-lhe de apoio durante os últimos anos de vida. E que também lhe serviu de instrumento de protesto: quanta bengalada meu pai desferiu contra o ar, sempre para cima, nunca para os lados. Que violento meu pai nunca foi. Foi apenas um protestador pacífico.

Pois essa bengala tinha para mim um grande valor sentimental. De quando em quando, eu passeava com ela pelo jardim de casa, em volta da piscina, em traje de banho, apenas para sentir no duro da madeira a lembrança quente e macia da mão do meu pai. E também por esse motivo: o motivo que leva a menina a antecipar o futuro, usando os sapatos de saltos altos da mãe. Mas essa era a bengala de meu pai.

A bengala do meu pai estava sob a minha estrita posse desde o dia 20 de novembro de 2001 quando ele nos deixou. E que lugar eu escolhi para manter intacta a bengala do meu pai: o cantinho do box do banheiro que era dele. E que ninguém mais usava.

Meu pai morava nos fundos da minha casa, mas não devia. Devia morar na frente, no melhor cômodo da casa, na sala de visitas. Dei às visitas que nunca me visitavam o melhor cômodo, e dei para o meu pai, aquele que me gerou, os fundos da minha casa.

Interessante que, enquanto ele estava vivo parecia-me tão normal dizer: “ meu pai mora comigo, lá nos fundos de casa.”

Vivo ele, o fundo de casa me era um lugar digno: ensolarado, amplo, quase um loft, onde depois que ele se foi montei a minha academia de ginástica. Mas morto o pai, o lugar me pareceu indigno de sua memória. E eu, indigna de ser sua filha. E foi nessa indignidade toda que aprendi que não se dá, como única opção, para os que estão partindo deste mundo, os fundos de casa. Os que estão partindo devem fazê-lo pela frente.

Incomodada em minha alma, e sem saber como expor esse que me era o incômodo, procurei o Ivo e tentei vender a ele a idéia estapafúrdia de demolir a construção, e fazer ali um jardim. – “Um jardim japonês”, eu disse a ele, entusiasmada, pensando que, ao acrescentar uma qualificativa ao meu jardim, estaria melhor convencendo o dono da casa e do dinheiro, a dar-me autorização e verbas para a construção do jardim.

Não adiantou: Ivo me disse assim mesmo: “é mais fácil eu te comprar uma passagem para você visitar os jardins do Japão, do que concordar com essa idéia absurda de demolir o que já está pronto.” E ainda acrescentou com a lógica dos brutos: “isso aqui ainda pode servir para um de nós dois, no futuro.”

Mas que insensível sabe ser esse bruto, esse que me compreende tanto nas manhãs de domingo, mas age com a lógica dos homens de negócio nas segundas, e nas terças, e nas quartas, e nos demais dias da semana.

Então, pedi para montar uma academia e ele concordou. Uma academia de nada, para uma malhadora de nada: alguns poucos aparelhos, uma esteira, uns pesinhos. E aquilo me valeu de muito: passava as manhãs ali entre meus cachorrros e meus livros, deitada num colchonete, pensando. Que pensar, e conversar com meus bichos, é matéria de que gosto muito.

Um dia, aposentei a academia dos fundos de casa, e passei a frequentar para valer, a academia que se instalou na rua da minha casa: muito mais moderna, cheia de som e de vida. E de jovens que me tratam como se tratam aos iguais. Uma alegria só.

E a Nalva, essa, passou-me a usar o banheiro, o tal banheiro que escondia a bengala em reserva de lembrança eruginosa.

Pois num desses dias, quando Nalva precisou aliviar-se de suas necessidades, bateu a porta do banheiro por dentro, e ao tentar sair, descobriu-se trancada. Para sempre trancada. O trinco do lado de dentro, havia sumido, num passe de mágica. E dá-lhe grito. E dá-lhe que ninguém ouvia seus gritos, tão grande é o mausoléu a que chamo casa.

Sobrou para quem? Para a bengala! Não sei o que levou Nalva a pensar que dando bengaladas na porta, a porta se abriria. O fato é que fui encontrá-la chorando, algumas horas depois, quando senti fome de comida e não senti cheiro de almoço. Sentada no chão, suando em bicas, lá estava Nalva. A porta com algumas escoriações. A bengala, quebrada. Quando vi Nalva naquela situação, também chorei: pela bengala.

Não sei se ainda tenho em casa os pedaços daquela que, um dia, foram bengalas. Ouso pensar que sim, que Nalva me fez essa bondade. Mas prefiro não saber e por isso não pergunto.A dúvida me é menos angustiante do que a certeza.

Em meu coração, ainda tenho aquela bengala. E outras coisas mais, que me doem. Como bengaladas na cabeça, essas coisas me doem.

* A foto mostra meu pai, seus filhos e nas mãos, a sua inseparável bengala.