QUEM NÃO DESCE FICA SÓ.
ANA MARIA RIBAS.

Eu conheço seres de uma espécie tão densa que quando escrevem não vem a letra, vem a matéria prima. Prima da dor, prima da solidão, prima da tristeza. Eu conheço uns seres tão profundos que, sob tal profundidade, viver lhes é uma tarefa muito solitária. Então, eu,  mediana nas linhas dos medianos, daqueles que muito esporadicamente colocam os olhos para fora, mais afundo na solidão do outro. A minha solidão soma-se  à desses tais e sob tal equação- que não desejo mas acontece - sucumbir ao peso é inevitável.
 
Não sei em que momento verdadeiramente os conheci nesse conhecimento que sabe além do que deveria saber. Mas houve um momento em que esse conhecimento abriu-se para mim como uma cortina de voial ao sabor do vento, velando e mostrando, mostrando e velando. De sobressalto em sobressalto vou descobrindo o que nem pedi para descobrir, mas que me veio em súbita iluminação. Que dependendo do lado em que se olha parece ser indiscrição. Mas é amor. Amor que simboliza um marco nos meus ritos de passagem.
 
Há alguns anos, cultivar esse amor me seria impossível. Mas hoje avelhantada de alma e contrita de espírito, ignoro o corpo e  dou-me ao luxo de amar a quem amo. Digo em alto e bom som para quem quero dizer: “ meu querido”. Ou “ minha querida”. Adquiri o direito de proclamar que a humanidade me é querida, e faço dessa doce palavra uma extensão dos meus pensamentos.
 
 Que valor tem para mim poder expressar os meus pensamentos!  Esse é o lado bom. O lado bom de penetrar no outro é saber exatamente em quem você tem depositado as suas reservas emocionais, os pronomes de tratamento, os verbos e os adjetivos, que inventamos para sermos nós, para marcarmos o mundo com a nossa rubrica histórica.
 
A melhor coisa que o tempo me trouxe foi exatamente isto: ver a pessoa de alma nua e saber distinguir o que é bonitinho do que é ordinário. 
 
O lado ruim é que ver, de repente, se torna tão perigoso. Não o perigo de Davi com Bate Seba, mas o perigo do Cristo que, olhando para cima avistou Zaqueu e nesse avistar que outra coisa pôde fazer senão dizer:  “desce depressa Zaqueu, porque hoje me convém pousar em sua casa.”
 
Porque o Cristo pôde entrar na casa de Zaqueu sem ter sido convidado. Cristo pôde. Mas eu precisaria do convite. E o convite, que seria a forma socialmente correta da indiscrição possível, pode me ser tão intransponível quanto uma porta fechada.
 
Quando uma matéria ávida de Deus  se fecha para os mensageiros de Deus, só resta ao Cristo vir em pessoa. E ainda assim, Zaqueu precisa descer da árvore.

 Eu sigo em frente,  com o meu susto profundo.