VINTE E QUATRO HORAS.  
ANA MARIA RIBAS.
 

Não posso olhar o dia de perto sem enxergá-lo de longe, nas suas vinte e quatro horas. Tudo bem que seis são para dormir. Mas ainda me sobra muito. E esse muito é tão pouco que não dou conta.  Como gastar, enfim o meu dia? Como gastar fazendo o que gosto muito, e preenchendo as brechas com o que gosto menos, se o que gosto muito não me deixa brecha para gastar no que gosto menos? Quantas coisas tem-se acumulado em minha vida à espera de uma brecha: coisas importantes que não mereciam brechas, mas um horário fixo, um dia fixo, uma data determinada a não se esquecer.

 Uma olhada retroativa no calendário particular, aquele que cada um coleciona marcando as datas especiais,  mostra-me que o dia dois de outubro já  foi, e eu bem sabia que já tinha ido. Mas ficava transferindo o mea culpa e a solução para o outro dia. Esse era o dia.

 Quem sabe comprando um livro do assunto que ele mais gosta,  não consigo acalmar  o casal? -  ela também, indignadíssima comigo,- e com toda razão-  porque esqueci de cumprimentá-lo no dia do aniversário. Esse: dois de outubro. Faço as contas: com seis dias de atraso, preciso caprichar no presente e no cartão. Preciso bordar em letras de amor o que me faltou em lembrança. Meu Deus, como pude esquecer?

 Nem preciso de Deus para a resposta. Saio tão pouco de casa, uso tão pouco o talão de cheques, nada que me aproxime da necessidade de perguntar ao  primeiro vivente que passa ao lado: “em que dia, mês e ano estamos nós, depois da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo?” que esqueci! Acontece-me de esquecer.

Um livro que trate de uma guerra, contrabalanceando ideologia e horror, embrulhado em papel dourado, com um cartão feito no capricho,  me redimiria desse pecado. São 10 horas da manhã, hoje não tenho obrigações a que eu mesma me imponho, como parte da disciplina.  Dá tempo de ir até a cidade vizinha, porque a minha – ainda- não tem uma livraria.

 -Ainda se fala assim? Livraria?

 Esses dias tentei convencer o Ivo da absoluta necessida de termos uma livraria: A Livraria da Beth! Mas como não sou a Beth, e o meu marido não se chama Zuenir, a resposta foi um silêncio de profunda indignação. Ivo não acredita mais nos meus dotes empresariais, porque já provei que não tenho dotes empresariais e como não há prova sem ônus, adivinha quem pagou o ônus? Pois é : ele mesmo.

 Então seguimos para Umuarama – eu comigo mesma-  a métropole mais próxima. Que também não tem uma mega livraria que reúna muitos títulos.  Mas tem algo que se aproxima. O esforço mais honesto que se faz em favor do universo literário recebe o nome de Livraria Paraná. As 11,00 horas estou dentro dela. Já vou entrando e perguntando:

 - Chegou “A Louca da Casa?”

 As moças se entreolham e percebo que devem pensar que a louca sou eu: já é a terceira vez, em dois meses, que apareço por lá perguntando sobre a louca da casa. Também percebo que estão  mal preparadas para vender livros porque jamais ouviram falar nesse título. E em outros, que perguntei.

 Mas  fui até Umuarama  para comprar um livro cujo tema seja uma guerra, qualquer guerra que tenha havido no universo, menos as guerras domésticas. Fui comprar um livro para presentear uma pessoa que me ama muito, e que eu também amo muito, mas que fez aniversário há seis dias  e eu esqueci. 

 No caminho até o expositor, uma nova tentativa para me presentear, resulta em uma nova impossibilidade.

  - Tem Clarice Lispector? 
- Qual o nome do livro?
- Qualquer um.

  Também não tem qualquer um.
 
S
em encontrar um único livro que trate das guerras de que ele gosta, encontro um tema que se aproxima, pelo doloroso e pelo verídico. Para ele: “ 102 Minutos – A História Inédita da Luta pela Vida nas Torres Gêmeas”. Para mim: “Uma Breve História do Mundo”.

 Passo na famárcia de manipulação, mando manipular o creme que uso sempre. Percebo que o Dr. Humberto faz um esforço enorme para lembrar-se de mim e não consegue. Eu também não me lembrava mais do nome dele- só da simpatia- mas dou um jeito de perguntar para a atendente. Então começo a chamá-lo pelo nome e percebo que o sofrimento dele aumenta. Mas como são educados e sensíveis os homens orientais! Finalmente, quando retiro a receita da pasta, ele lê o meu nome e se ilumina todo. Comenta comigo, olhando no cadastro:

 -“Ana há quase dois anos  você mandou manipular  esse creme aqui. Olha como passa o tempo!” – E não é que falando assim ele quer se desculpar? Nem precisa, meu querido, nem precisa.  

 É verdade, há quase dois anos. E há  seis dias Álvaro Henrique  Ribas Sass comemorou mais um aniversário, e eu esqueci de lhe dizer o quanto ele é importante para mim. Pois vou dizer agora, já que na hora em que deixei o presente ele não estava em casa:

  -“Querido, perdoe-me o esquecimento. Perdoe-me porque a tia te ama muitíssimo e aos que muito amam, além dos sentimentos também se lhes exige muitos pensamentos.  Pois foram esses, Henrique, foram esses, que me fizeram perder o tino.  Que Deus o abençoe grandemente. Que Ele jamais esqueça de lhe lembrar que é preciso nascer e renascer, todos os dias da sua vida,  em esperança, em paz, em justiça, e em fidelidade, diante de Deus e diante dos homens.”

 Acho que redimida estou. Até o próximo dois de outubro.