A carta

São as pequenas coisas que alegram a nossa vida e é no dia-a-dia que as encontramos. Não adianta buscar grandes satisfações, elas só são grandiosas quando ainda estão tomando forma em nossa imaginação.

O que quero dizer é que só acordei para isso quando recebi uma carta de meu filho, entregue em mãos, no dia de sua partida para um país distante que nos tem alijado do convívio tão displicentemente saboreado quando estava disponível, mas que ficou gravado na mente do menino e do homem que naquele dia partiu.

A carta, que resumirei abaixo, fala de coisas simples, singelas que haviam se apagado de minha mente e que ao lê-la hoje percebo que, por isso, minha vida não foi em vão.

Pai,quando eu cheguei tinha a sua cara e você chorou de emoção, tomou-me ao colo e mostrou-me aos seus, orgulhoso.

Saía cedo por nós e se alegrava ao ver a festa que eu fazia quando você chegava.

Aplaudiu meus primeiros passos e quando eu caí, levantou-me e disse: “Não foi nada filho”.

Levou-me pra tomar vacina e brigou quando disseram que eu não tinha mais idade e os fez me darem mesmo assim.

Ensinou-me a empinar pipa, a soltar balão, a subir em árvore, a chutar a bola; em Santos ensinou-me a andar de bicicleta: primeiro tirou as rodinhas, depois fingiu que me segurava e quando me vi estava andando só; alguns anos depois me emprestou o carro.

Ensinou-me a dizer a verdade, lutou minhas lutas comigo e mostrou que outras é preciso enfrentá-las sozinho. Quando me acovardei, abraçou-me sem me condenar. Abraçou-me também quando já adulto eu chorei.

Torceu por meus anseios e celebrou minhas vitórias. Orgulhou-se de meus feitos e chorou minhas derrotas; aliviou-se quando me recuperei. Ouviu com interesse todas as minhas histórias, sorrindo com as boas e sofrendo com as más.

Mostrou-me Luís Gonzaga e Chico Buarque, levou-me para ver ET e para andar de bicicleta depois do filme.

Ensinou-me que ninguém é melhor do que eu e que todo homem merece respeito. Que me esforçando eu posso tudo que quiser, pois nada é impossível. Falou-me de Deus, da vida, do homem, do tempo e do cosmos.

Declamou Fernando Pessoa, mostrou-me livros, textos e frases e disse que nada disso era importante, pois o fundamental não está nos livros, está na experiência que é intransferível; ensinou-me o livre pensar, a olhar para dentro e soltar as próprias amarras.

Conversou infinitas horas comigo e sempre perguntava se eu estava feliz.

Rezou por mim, lembrou-se de mim todos os dias, investiu-me de seus maiores sonhos, desejou-me os melhores dias e esteve sempre onde eu pudesse encontrá-lo.

Me amou, me amou, me amou... Me ama e nunca pediu nada em troca.

Com amor, seu filho.

Hoje, depois de realizar quase todas as grandes satisfações que meus sonhos projetaram, nenhuma me satisfaz mais do que saber que na simplicidade do meu dia-a-dia eu fui pai.

Agora, nesta véspera de Natal, diante do computador, quero escrever ao meu filho sobre o sentimento que me assalta por não compartilhar com ele, pela primeira vez, esta festa tão familiar, mas tudo que ensaio parece piegas. Então me vem à mente lhe mandar um presente, um presente singelo que também o faça se emocionar e com ele envio este e-mail:

Filho, ontem fez seis meses que você partiu, e o tempo voa e a gente se acostuma, mas dia destes estive na chácara e aquela casa tem pedaços de você por toda parte e lembranças ainda maiores. Fiz um esforço grande para a emoção não me dominar e saí pelo jardim, ele continua o mesmo, as árvores que você plantou estão viçosas, acho que se nutrem com a esperança de voltarem a ser admiradas por quem as plantou.

Hoje é sexta-feira, amanhã será Natal, e outra vez a saudade chega sorrateira, mas desta vez eu a deixo me dominar, é um sentimento puro reforçado pela época festiva.

O consolo maior é saber do privilégio que você tem em estar indo em busca de seus sonhos e isso, além da admiração pela perseverança e coragem, me enche de orgulho.

O único presente que a distância me permite enviar vai abaixo ou no anexo, ou ainda em um e-mail separado, para que você tenha um pedaço fresquinho daquilo que eu sei que tanto amas.

Que você tenha um feliz natal com a certeza de que estarás por todo o tempo em minha lembrança.

Um beijão meu filho e que Deus o abençoe.

Obs. o anexo continha três fotografias em um nublado outono, onde se viam, ao fundo, algumas árvores que ele plantou.