Alma de oleiro

A notícia da morte de Clemente me apanhou no metrô, em um daqueles oásis que as ondas do celular milagrosamente atravessam a grossa camada de terra e concreto e indiscretamente nos alcança.

– Infarto no miocárdio. – disse-me o noticiador. Interessante como a morte que sempre nos envolve em um manto de tristeza, quando real se apresenta como um lampejo de mudança, de curiosidade e de fascínio. O Clemente se foi e deve estar em algum lugar. Onde? Como? Mais um que cumpre o período de vida e se vai não sei para aonde nem para que tempo. A morte é boa, como dizia um velho amigo, é por isso que Deus não nos deixa sabê-la, pois se deixasse ninguém mais ficaria aqui neste mundo pequeno.

Imediatamente excluí os compromissos menos importantes, mas cumpri o que havia começado, e na boca da noite atravessei o rio Pindaibinha e adentrei a cidade que não visitava há mais de trinta anos. A última vez foi no casamento do Clemente, fui seu padrinho e o único amigo a comparecer. Seus pais já haviam morrido os irmãos nem pensar, não tinham compostura para se apresentarem diante da família de Lucrecia. Achei, na época, que o meu amigo havia omitido, não sei se com a conivência da noiva ou não, sua origem de filho de um operário de olaria e irmão de seis homens que seguiram o ofício do pai e de duas irmãs tão lindas que destoavam do meio e por assim também se sentirem partiram em busca de compatibilidades, mas no caminho perceberam que necessitavam de mais que apenas beleza. As portas das compatibilidades, que julgavam merecer, não se abriram e as da origem não as satisfaziam, portanto, ficaram com o que tinham; a beleza, que passaram a explorar em inferninhos da Rua Augusta da época.

Nenhuma dessas simplicidades da vida referendava Clemente a entrar para a família de Lucrecia, que há três gerações se ancoravam no orgulho de terem tido um ascendente famoso, nas letras, em um país europeu. Clemente era diferente dos irmãos e por ser o mais novo era o degrade para a beleza das irmãs, portanto, já mais belo e dotado da ambição necessária para, aos dezesseis anos deixar os irmãos e os pais e cair no mundo em busca de uma vida que atendesse aos anseios que sentia pulsar em seu interior. O que quero passar a vocês é que naquele casamento, além da noiva, todos eram contrários àquela união. Mas o meu amigo estava vitorioso, estava onde queria estar, casando-se com a mulher que amava e sabia ser amado, com a cabeça cheia de sonhos e saúde para realizá-los, tanto que a indignação dos convivas nem de leve o atingiu.

Casado, jogou-se no mundo em busca do único meio, segundo ele, capaz de anular o preconceito a que era submetido. Ganhar dinheiro, ganhar muito dinheiro e ficar rico.

E assim foi. Atabalhoadamente ele se meteu em todo tipo de negócios, alguns de cunho duvidoso, viveu na linha da legalidade e às vezes a ultrapassou, mas depois de alguns anos chegou lá, conseguiu. Foi o empresário do ano pela associação comercial da região e no dia da premiação todos, não faltou nenhum, os membros da família de Lucrecia estavam lá para aplaudi-lo.

Aquele foi o dia do ápice da vida de Clemente e, se naquele palco ele tivesse tido um ataque fulminante, a família deixaria de apoiar o seu orgulho no eminente literato e erigiria um busto na praça da matriz em homenagem ao seu mais ilustre membro.

Pois é, mas ele não teve um ataque fulminante no palco da glória e naquela noite dormiu com Lucrecia como seu rei.

Mas, como a própria palavra diz, ápice era aonde ele queria chegar, o objetivo de todo o esforço empreendido nos últimos anos e agora o homem queria descanso, não queria continuar a se esforçar para ali permanecer, queria relaxar e gradativamente a alma do filho do oleiro foi encontrando espaço e ao fim de alguns anos expulsou o empresário intruso.

Nos quatro dos seis últimos anos Clemente vegetou opulentamente, deu sobrevida ao menino que ele sufocou no dia em que conheceu a amada Lucrecia, tentou impingir na mulher e nos filhos respeito àquele barro original. Não conseguiu. No quinto ano rendeu-se, e a luta empreendida para reencontrar o empresário que ele expulsou foi minando seu patrimônio e sua saúde e neste último ano resignou-se, mas era tarde e o coração não suportou.

Cheguei ao velório já tarde da noite e toda família de Lucrecia estava outra vez reunida, os que sobreviveram trinta anos mais velhos e engrossados por uma penca de novos descendentes de um famoso letrado europeu. Atravessei a turba que ocupava toda a calçada, entrei no velório, prestei condolências à viúva, acheguei-me ao caixão, fiz uma oração, correspondi ao sorriso que a resignação estampou em seu rosto, beijei o meu amigo na testa, olhei em volta e não vi ninguém que não fosse da família da esposa.

Às duas da madrugada já estava em minha casa aconchegado entre os lençóis e edredons de minha cama.