DOCE COMO ALGODÃO DOCE. 
ANA MARIA RIBAS.
 
- Vovó Ana você sabia que a minha mãe me levou em São Paulo, para ver as patinadoras no gelo? Eu fui,  de vestido cor-de-rosa. 
 
Ela está na fase do “você sabia”. As palavras ditas com rapidez de relâmpago.  Nove entre dez,  começam assim. Eu estou na fase do “nada sei”. Ela olha o mundo com um olhar invictamente cor-derosa. Eu me visto de verde-periquito para disfarçar o gelo.
 
Dois mundos nos separam e uma genética marcadamente forte nos aproxima. Eu sou ela ontem, e queira Deus, que ela não me seja eu, amanhã.
 
- Sabia que eu tô com saudades de você? Ela me fala- dengosa.
 
Saudades é pouco quando se trata de obter um único e necessário olhar para o futuro dos outros. Que da alegria dos outros podemos nos vestir quando ficamos sem a nossa. Por osmose, sempre acabamos nos contagiando. E há 2 meses tem-me faltado esse necessário contágio.
 
- Sabia que o meu pai foi para “Isael”? O pai está lá a serviço do reino, por uns dias.
 
Israel seria um dos poucos destinos que me levariam para longe de casa. Foi lá que escrevi num guardanapo o título do meu livro: “Não há Jerusalém sem Gólgota.” Olhando do Monte das Oliveiras, eu vi Jerusalém e vi o Gólgota, que nem estava acessível à linha da visão, mas eu vi. Cinco anos depois, em exatos 7 dias e 7 noites jogo no papel os sentimentos daquele dia e me nasce enfim:  “ Não há Jerusalém sem Gólgota.”
 
Mas essa que me telefona em cor-de-rosa, essa que eu amo tanto, não sei direito o que fazer com ela. Na chegada sim, eu sei: beijos, abraços, tudo o que é gostoso. Mas isso, para uma criança, é um preâmbulo: em seguida, ela espera que venham intermináveis subidas e descidas na casa da árvore, mas o gás da alegria logo me acaba e eu fico toda confusa.
 
Sinto o desamparo da extrema doçura.  Porque o meu amar só sabe amar na linha do tempo, ininterruptamente,  quando dentro dele cabe o infinito. Que vocação eu tenho para o infinito! Só o infinito pode me preencher. Há tempos desisti de ser preenchida com o áspero barro, ou com o mais terno dos ternos encantos. Não acontece assim. Comigo não acontece.  Só Deus me salva de um olhar comprido sobre o por do sol. Só Deus me salva do último suspiro antes de adormecer. Enfim.
 
Mas eu tenho netos – dois – e tenho essa que me é neta e que escolheu como modelo a avó. Diante dela, algodão doce perde o doce para mim, tão ínsipido fica.  E ainda sentindo esse desamparo, preciso encontrar um jeito de ser o que ela pensa que sou,  e já o procuro antes que o carro pare na porta.
 
Mesmo cansada dos 800 km de viagem, retoco a maquiagem, penteio o cabelo, coloco o cinto, fecho o zíper da bota, procuro na bolsa um brinco, na frasqueira um perfume, troco o óculos de grau por um óculos de sol, cumpro todo o protocolo que deve cumprir uma avó que é modelo para a neta. Faço tudo isso só para ela.
 
Eu lhe sou a ponte movediça entre dois castelos. Em um castelo, habita a mãe, cabeça. Em outro, a avó – Martha Rocha, talvez, para ela? Ou Ana Maria Braga?  Que sei eu? Que sei eu, dessa, cor-de-rosa rosíssima, que vem para mim, de lábios apertados, não para o beijo, mas para o batom?
 
Eu acho que lhe sou o futuro possível: ela não quer a profissão de  dentista, como a mãe, ela quer  a profissão de vovó Ana.
 
A satisfação que eu lhe devo, sendo o que ela espera que eu seja, me é devolvida em forma do mais profundo amor: seu olhar me acompanha de maneira tão atenta, que eu não ando, flutuo. 

Doce como algodão doce. Até a hora de voltar.