PARA SEMPRE TE AMAREI. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 
Todo domingo é assim: uma dia em que preciso escrever. Um dia em que em algum lugar do mundo deve estar havendo um equívoco. Porque vocês todos somem- vão para onde vocês? - e eu apareço.
 
Para onde vão vocês aos domingos?
 
- Vão para a praia? Aqui não tem.
- Vão para os shopings? Aqui não tem.
- Vão para os teatros? Aqui não tem.
- Vão para a casa da mãe? Aqui não tem.
 
Mas também não faz a mínima diferença. Escreverei  para uns poucos perdidos num domingo sujo.
 
Ou limpo. Já limpei todos os cocôs dos cachorros em volta da piscina porque hoje Nalva não vem. Hoje também é dia de lembrar a falta que Nalva me faz, e o aumento de salário que ela merece, mas que o presidente Lula não reconhece.  Eu não posso ser mais reconhecida do que o presidente, porque ele é a autoridade máxima.
 
Domingo é dia de Maria mas também pode ser dia de Amadeu. Amadeu Bernardelli. Hoje amanheci com saudades dele: personalidade caricata e muito intrigante. Poucos dias antes de morrer, estávamos os dois no hospital, ele com o braço magro todo furado por inúmeras agulhadas, o rosto abatido,  a alma ainda procurando alento;
 
-Ana, eu vou te explicar o que é a morte. – Ele me disse olhando ora para mim, ora para o azul do céu, que aparecia em nesgas pela cortina do quarto hospitalar.  
-Explique, então.
- A morte é assim como se o cabra estivesse muito cansado depois de um longo dia de trabalho. Daqueles lá na fazenda, carregando saco. E aí, sem mais nem menos, ele deita, dorme e quando acorda, pergunta: mas já amanheceu? A morte é isso.
- E quando será o amanhecer? – eu instigo a resposta só para ter a máxima certeza  de que ele, finalmente, compreendeu tudo.
- O amanhecer será quando Jesus voltar.
 
Ele sabia! Com toda a irreverência que o acompanhou em vida, ele sabia dessa delicadeza que me parecia tão impossível de se saber no mundo dos que apenas vivem.  
 
Era também um cara de surpresas brutas. Que por mais brutas que fossem, vinham sempre acompanhas de humor.
 
Um dia, bate-lhe na porta, um mendigo. Que não era assim bem um mendigo, mas um cidadão cansado do trabalho, espreitando a mendicância. Homem forte, parrudo.
 
 Amadeu Bernardelli atende o homem lá da rede, deitado na varanda. O homem começa a desfiar uma história comprida, como prefácio para o pedido. Meu sogro, levemente irritado com a história forjada, e mais irritado ainda com o seu descanso interrompido, propõe  ao sujeito a seguinte questão:
 
- Se você parar a sua história por aí, leva cincão, se continuar, leva hum  só. E tirando do bolso os 5 reais, despachou o sujeito, rua afora.
 
Num dia de muita dor para mim, ele me disse chorando muito:
 
- Por que ele e não eu?  Em toda uma vida foi a primeira vez que vi meu sogro chorar. Nem mesmo quando teve a perda  da sua prória cria, ele chorou. Mas naquele dia, já devidamente surrado pela vida, alquebrado pelo peso dos anos,  meu sogro chorou.
 
Mas essa lembrança não é puramente minha, é uma lembrança compartilhada com outros afetos.
 
A lembrança mais pura, aquela que ficou sendo puramente minha,  foi no dia em que eu estava aprendendo a andar de bicicleta, levantando e caindo, levantando de novo para cair de novo, toda ralada, a molecada atrás de mim, alarido de festa em plena rua, e ele passou, parou, avaliou o meu comportamento, e  disse-me assim:
 
- “Se eu fosse, pelo menos 20 anos mais novo, e não fosse seu sogro, você não seria a minha nora.”
 
 O tom era de quem finge estar irritado, mas nas linhas e nas entrelinhas, ele esparramou-se  em  um amor tão delicado! Que eu fiquei comovida e até agora me comovo. Ele estava dizendo que se casaria comigo!  
 
Aquilo foi tão grande para mim, que dali até a sua morte, a minha resposta em atos concretos de vida,  foi assim:
 
- “Eu também te amo, seu Amadeu. Para sempre te amarei.”