O PIANISTA

A casa, extremamente silenciosa, deixava escapar pelos ares arrebatadoramente o som de pianista ao seu piano; nos umbrais da porta afigurava-se os raios que as cortinas não podiam impedir. A gravata apertava-me a garganta, demasiadamente, malgrado não poder eu acorrer a novas sensações. Deixei cair o corpo sobre uma cadeira gasta pelo uso. O cansaço falava destrutivamente aos meus ouvidos fatigados. Da janela, entre as cortinas, observava-se na rua as pessoas que andavam, tristemente. Desgraçadamente a vida seguia, ainda que a passos desnorteados. O jornal sobre a velha mesa de cedro fazia vislumbrar a tempestade de luz que o sol aspirava reaparecer.

Andréas à ante-sala, tocando divinamente seu piano, flutuava nas brisas primaveris. Sentei-me a seu lado, extasiado.

Deteve a música, fitando-me.

"Por favor, não pare... Continue”, pedi-lhe.

Observou-me, a face acesa, os dedos mórbidos, os olhos furtivos; malgrado a exultação do Mozart desmitificado.

Entregou-se às teclas, porém, como se fosse a última vez. Não consigo imaginar no que pensava Andréas naquele instante, apenas o ouvi, taciturno, como a última vez o ouvisse tocar.

Na rua as pessoas ainda pisoteavam o chão primaveril, ensolarado primor de flores que virão. Em casa, na segurança de nosso ninho, fatigava-me as sombras de um sol primaveril que não podia tocar-me as faces; assim mesmo tocava-me as notas que Andréas dedilhava ao piano, visto o segredo das flores que a primavera ainda traria. Se houve amor maior por Mozart que por Andréas, não pude jamais reconhecer, pois a incerteza permanecia intrínseca em nós dois, divinamente sensibilizados pelos dedos magricelas de meu pobre pianista Judeu.

Mauricio Novais

Maurício de Novais Reis
Enviado por Maurício de Novais Reis em 14/10/2008
Reeditado em 14/10/2008
Código do texto: T1227835
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.