O SINO DE OURO.
Ana Maria Ribas.
 
Hoje quero falar sobre a espontaneidade da vida. A vida acontece. As coisas se constroem. E nós somos construídos com as coisas que são e acontecem.  Com as pessoas que tocamos. Com as convergências que não adivinhamos.  Com atos divinos: apenas humanos.
 
Além de viver, da forma como vivem os homens, há  a capacidade de sermos plasmados em milhões de outras possibilidades. De que forma essas coisas acontecem? Em que momento exato da vida, por exemplo, deixamos de achar os animais meras criaturas de quatro patas e lhes atribuimos uma personalidade? Em que momento da vida, passamos a gostar de canjica e deixamos de gostar de arroz doce? Não sabemos. E nem mesmo sabemos, porque entramos em infindáveis gostos e des-gostos que, nos fazem imperceptivelmente mudados, a curto prazo, e completamente transformados a longo prazo.
 
Anos atrás, eu não acalentava nenhum amor pelos animais. Dava um fim em todos os cachorros que as crianças traziam, arrumando-lhes um novo dono, enquanto elas estavam na escola. E hoje, não apenas amo os animais como também sou deles uma admiradora e defensora apaixonada. Eu não saberia mais viver sem proteger os animais.
 
 Em que momento essa metamorfose aconteceu? Em que dia deixei de ser a bruxa má para ser a rainha protetora? Eu não sei. Posso buscar na memória vestígios que me levem a uma provável explicação, mas isso não me daria o direito de dizer: foi ali que passei a amar cães, gatos, piriquitos, papagaios e a bicharada toda.
 
A verdade é que a história subjetiva é, muitas vezes, mais  dinâmica do que a objetiva. Por causa disso,  quando o sino de ouro toca no céu, não conseguimos ouví-lo na terra. Somos surdos a essa espécie de chamado que nos abençoa em vida. E ainda assim, somos abençoados.
 
Eu não tenho a pretensão  de compreender todas as coisas: seria muita onipotência desejar viver com essa máxima compreensão. Eu só gostaria de interpretar adequadamente,  em que exato momento, o que era externo se me tornou tão visceral a ponto de se fazer parte integrante de mim, de maneira que existir, sem tais convicções, me parece, agora, tão difícil.  
 
Esse tema me veio de maneira muito forte.  E foi assim que me veio: Eu tomava meu segundo café da manhã – às 10 horas da manhã. E diante de mim estava o pão integral, o mel e a margarina. Que sobrepostos, formaram um fatia grossa. Uma considerável porção de carboidrato para se gastar na academia. Devagar, lentamente, fui cortando aquela fatia em pedacinhos – tenho essa mania de cortar tudo em pedacinhos  – e fui comendo até que: o pão sumiu.
 
Dentro de mim, o pão. Fora de mim, mais nada.
 
Em raro momento de cintilância divina,  percebi que não há nada que nos modifique por dentro, que não tenha um reflexo por fora.  Também percebi que há situações nesta vida tão extremas que, enquanto não as assimilamos como parte de nós, elas se tornam fardos fora de nós, fardos que temos que carregar, como uma carga. Mas, quando permitimos que o peso  se misture às nossas experiências de vida – como a fatia de pão se misturou a mim, e se tornara agora parte do meu ser- então ganhamos um novo jeito de ver, de olhar, de existir, de perceber, de nos mover na terra. Um alento para prosseguir.
 
Tudo exige um processo metabólico: seja o pão que saboreamos ou as dores pelas quais passamos. A diferença é: onde estamos carregando a nossa dor? Nos lombos, por fora, como carga pesada que sacrifica um animal, e o curva diante dos homens? Ou por dentro, com a harmonia invisível dos seres que, compreendendo ou não compreendendo, curvam o espírito diante de Deus?
 
 Eis aí algo celestial a ser pensado, com a diligência máxima de quem procura o toque de um sino de ouro. Blém, Blém, Blém...