O EFEITO MANADA
ANA MARIA RIBAS.
ANA MARIA RIBAS.
A Bíblia sempre me fez meditar no efeito manada sobre o povo de Deus, desde o episódio do bezerro de ouro em Êxodo, até a morte de Jesus, nos Evangelhos. O efeito manada parece ter sido descoberto agora pelos economistas, mas é tão antigo quanto a humanidade. Esse fenômeno social está amplamente descrito nas páginas do livro Sagrado. A turba enlouquecida tanto mata quanto idolatra, viajando pelos extremos da interpretação coletiva. Isso é o povo: o povo é o efeito manada.
O efeito manada atravessa as páginas da Bíblia e alcança a história: a eugenia, o nazismo, o darwinismo, e todas as ideologias segregacionistas nada mais são do que a amplificação do efeito manada. A história é contada pelos vencedores por causa do efeito manada: não sobra uma única pessoa para contar a história do ponto de vista dos vencidos. Os vencidos são calados, porque os que eram neutros, rapidamente, engrossam a fila da manada dos vencedores.
Nem precisamos nos aprofundar nesses conceitos. O efeito manada pode ser medido em qualquer situação social. Na moda que foi ditada para o próximo verão, na torcida organizada de um time de futebol, nos comentários dos críticos de artes, nas seitas que se propagam institucionalizando uma interpretação particular das escrituras - temos aí o efeito manada.
Eu gosto de observar o efeito manada sob o ponto de vista pessoal: um humanismo revisitado. Nessa medida de observação cabe um olhar introspectivo até sobre uma festa de aniversário, de crianças, por exemplo. Uma festinha de crianças é uma ótima oportunidade para observar o efeito manada. Chega a primeira mãe, e com ela chega também a primeira criança convidada. A mãe e a criança comportam-se com a civilidade e a doçura da individualidade preservada. Mas, uma hora depois, quando a festa atinge o auge da coletividade, não há mais mães e filhos: há o povo. O povo sem regras, sem noção, sem fronteiras, porque o coletivo empresta um sentimento de força, de coragem, de audácia, que o individual não contém. Não há mais mães colocando limites em filhos, e não há mais filhos, obedecendo às mães: há o povo. Há o povo subindo e descendo em nuvens de algodão doce, e de brigadeiros, e de pralines de amêndoas, e de pistaches, há o povo subindo e descendo escadas, entrando por espaços privativos e há o povo assentado, de pernas cruzadas, assistindo passivamente ao estouro da boiada. De repente, as mães não são mais mães, são apenas uma vaga lembrança da maternidade assumida e declarada. E de repente, a linguagem social se transforma numa chave que abre caminho para a permissividade absoluta da baderna infantil institucionalizada. Tudo é permitido porque sob o efeito manada, o que se faz, não são os filhos que fazem. É o povo quem faz.
O tempo todo sofremos a ação do efeito manada. E observar esse efeito continua sendo uma das sabedorias válidas. Porque muitas vezes, nem percebemos que a salvação do nosso mundo interior está no individual, e que só no individual Deus pode encontrar um caminho para implantar a sua imagem e semelhança em nossa vida. A semelhança de Deus, no homem, só é possível, quando mantemos a nossa individualidade preservada. Os monges que se enclausuram nos conventos, alcançam um estado de meditação e santidade muito mais facilmente do que nós, os comuns mortais, que todos os dias estamos à mercê do efeito manada. O dia de um monge deve ser assim: eu e Deus somos um. O nosso dia é assim: eu sou, e em algum lugar distante, Deus continua sendo. E nessa distância, não apenas percebida, mas também interiorizada, tenho que reforçar a minha posição na manada. Tenho que ser forte o bastante para afrontar todos os medos, que o estouro da boiada, lá no íntimo, impõe ao meu ser. E tenho que me comportar da maneira como se espera que eu me comporte. Tenho que comer chocolat au lait fourré praliné aux amandes, e tenho que sorrir com os dentes manchados de chocolate para não destoar dos demais sorrisos manchados de chocolate. Mesmo que eu não queira chocolate.
Assim se constroem e se fortalecem as relações humanas e as distâncias entre nós e Deus. E como é vasta essa distância declarada. E como continua sendo curto o caminho que nos leva a essa mínima compreensão de que estamos sob o efeito do estouro da boiada.
Há algum tempo eu tinha o hábito de separar uns dias da minha vida, todos os anos, para estar a sós com Deus. Eu me retirava voluntariamente para um lugar deserto, a fim de escapar do efeito manada. Eu não queria o efeito manada em minha vida. Mas errei o rumo: em vez de subir o monte, desci o vale.
Não importa se mantenho a devida distância do estouro da boiada, ou do epicentro de um furacão. Não importa quanto de infinito o meu olhar consiga alcançar ao pôr do sol de mais um dia: ao nascer de um novo dia, o efeito manada me afronta e me confronta com os estreitos limites da minha individualidade ameçada. E quem ameaça a minha individualidade? Eu mesma. Eu sou a pior inimiga da minha individualidade nunca totalmente conquistada.
Com que tristeza percebo e declaro que embora sedenta pelo milagre, a sede não me coloca no caminho, a fome não me faz adentrar a terra de Canaã para comer do seu mel: continuo mantendo a mesma inexorável distância de Deus.
Não importa se mantenho a devida distância do estouro da boiada, ou do epicentro de um furacão. Não importa quanto de infinito o meu olhar consiga alcançar ao pôr do sol de mais um dia: ao nascer de um novo dia, o efeito manada me afronta e me confronta com os estreitos limites da minha individualidade ameçada. E quem ameaça a minha individualidade? Eu mesma. Eu sou a pior inimiga da minha individualidade nunca totalmente conquistada.
Com que tristeza percebo e declaro que embora sedenta pelo milagre, a sede não me coloca no caminho, a fome não me faz adentrar a terra de Canaã para comer do seu mel: continuo mantendo a mesma inexorável distância de Deus.