OS CHEFÕES DA VIDA.
ANA MARIA RIBAS.


Nascimento e vida não são verdadeiramente sinônimos. Vida é liberdade mas nascimento é o princípio da escravidão. 

A criança não é como a batatinha que, quando nasce,  se esparrama pelo chão e avança em direção ao norte, ao sul, ao leste, ao oeste. A criança quando nasce fica estática. Ela depende de mãos que a cuidem e se não receber cuidados, morre sem satisfazer as suas necessidades básicas.
 
O nascimento é um estágio compulsório onde o estagiário não escolhe a empresa aonde vai estagiar ou a função que vai desempenhar. Nasce-se à mercê do acaso e esse acaso é tão variável quanto o número de combinações possíveis entre os cromossomos. Os cromossomos são os chefões da vida e o jogo deles é pesado. Eles determinam a saúde ou a doença, a presença ou a ausência de beleza que, afinal é uma questão de milímetros. 

Todos nascemos com um rosto e nesse rosto cabem dois olhos, uma boca e um nariz. No entanto, por uma questão de milímetros, o “Dr. Pitanguiz” ficou tão rico.
 
Os cromossomos são os chefões do pedaço mas a alta cúpula se chama DNA.
 
Até aqui não posso reclamar do meu DNA, mas reclamo da minha falta de liberdade. Eu não escolhi nascer do lado de cá do Atlântico e nem mesmo escolhi nascer na família que nasci. Caí de paraquedas no mundo dos brutos, onde o meu irmão, esse que hoje é pastor,  me chamava de “volume” porque eu passava o dia com um livro na mão e ele passava o dia carregando pacotes.

 Cresci como um volume, sem muito espaço. Um volume apertado entre outros volumes de utilidades mais aparentes. A minha utilidade sempre foi duvidosa.
 
A criança nasce sem liberdade e é totalmente indefesa. A única defesa da criança é o choro. O choro da criança é o jeito de dizer: “ eu hoje vou me vingar de vocês e vou lhes roubar o direito ao sono. Eu hoje vou esperar que me dêem o banho para fazer uma meleca mole.”
 
Depois, ensina-se a criança a pensar que ela é livre: “libertas quae sera tamen”. Pura mentira. A liberdade que nos dão é como a de um bezerro que tem uma corda molemente amarrada ao pescoço, de bom comprimento, que lhe possibilita ir e vir pelo pasto, sem a lembrança da posse que tolhe, que fere, que machuca. A corda é o instrumento de tortura, mas é uma tortura acostumada, e que, ainda por cima, nos oferece a falsa sensação de liberdade. Mas é mentira: a liberdade- nesse mundo -é uma mentira.  
 
Um dia, os chefões se reunem, puxam a corda e você leva o primeiro tranco:
-de onde veio isso? – você pergunta?
- Do seu avô inglês – alguém responde.
 
Nascimento é isso: uma combinação de cromossomos determinando o seu futuro genético e uma combinação de gente insensível determinando o seu futuro impossível.
 
Um volume só deixa de ser um volume quando descobre que existe Deus no céu, na terra, e embaixo da terra. Então, o volume se enche de Deus e sai pelo mundo puxando uma carroça cheia de cartas que falam de Deus. O volume precisa desempenhar tão bem essa função que só os insensíveis possam identificar no ser que puxa a carroça, um burro. Os demais, devem vê-lo como um anjo.
 
Para o volume, Deus é a única libertação possível. Também para os arrogantes, os bárbaros, os citas, os servos, os que pensam ser livres, Deus é a única libertação possível.
 
Pense no dia de hoje: qual é a sua verdadeira liberdade? Alguém consegue determinar se estará vivo ao final de 24 horas? Ou ao final desta próxima meia hora? Alguém consegue dizer se os planos do próximo domingo serão realizados?  Não há liberdade possível: há um grande mistério.
 



Nesta manhã, eu quero dizer ao meu irmão de sangue, esse que hoje é pastor, e que a infância inteira me chamou de volume, que eu continuo sendo um volume. Como um volume que sou, às vezes, olho para o mundo e faço meleca no mundo, e às vezes olho para o céu e faço uma canção de amor a Deus. Mas quem ouve?
 
Só há um jeito de ser verdadeiramente livre: é morrendo. E na hora em que me for determinado morrer, eu quero que uma única Pessoa me diga: “ Venha Ana Maria, venha para o mundo dos verdadeiramente livres.”  
 
E quem me leu, terá lido. E quem não me leu, não me lerá nunca mais. 

* A imagem mostra Dr. Ivo trazendo mais um prisioneiro ao mundo dos que pensam ser livres.