VIDINHA BURRA

Como uma égua selvagem no cio, Vera entrou em casa pela porta da cozinha bufando e, se observado atentamente, poderiam ser vistos rastros de poeira na trilha atrás dela. Havia perdido a chave da porta da sala e, com os braços longe do corpo, em posição de sonâmbulo, totalmente vestidos com alças de sacolas plásticas, rasgou apartamento adentro. "Como pesa essa merda!" As compras da semana, feitas no hiper-mercado, haviam tomado mais do seu tempo do que ela estava disposta a dispensar. Atrasada, Vera estava furiosa.

Ligou a televisão no canal do programa que não começava nem antes e nem depois das 19:26h. Tão pontual como ela gostaria de ser. E o relógio não perdoa, você sabe. Já passavam das 19:30h. O programa já havia começado. Tão interessante. Tão esclarecedor. Tão excitante. Mas apenas se fosse visto desde o início, quando era informada a chave de todo o resto do roteiro. "Merda de programa! O problema é que vicia."

Sentou exausta no sofá, já livre das pesadas sacolas plásticas que sufocavam seus braços e seu ego. Tentou acompanhar o programa mesmo tendo a impressão de que era tarde demais. E era. "Tarde demais, Verinha! Te organiza criatura!" Não pôde deixar de sentir uma ponta de tristeza ao constatar que sua maior preocupação era chegar a tempo em casa para assistir o programa da televisão que vicia. Guardou as compras e preparou um macarrão. Jantou sozinha, como fazia desde sempre. Escovou os dentes, lavou o rosto e previu o resto da noite: banho, livro e cama. "Vidinha burra! Amanhã vai ser diferente! Com certeza!"

No outro dia, não foi ao mercado depois do trabalho e, pontualmente, às 19:25h estava na frente da televisão ligada, com o controle remoto descansando no seu colo.