UM LUGAR DE ENCONTRO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.  

O escritor é um construtor de pontes. Como um construtor de pontes, ele une as pessoas que estão de um lado da ponte, às pessoas que estão do outro lado da ponte, e faz com que o encontro aconteça no meio. Há escritores que são como bússolas indicando o lugar exato onde o encontro deve se dar. Esses são bons para escrever, mas não são bons para se dar.
 
Jesus nunca respondia com lugares marcados para o encontro, Jesus era o lugar do encontro. E foi ele quem disse: “ se não vos fizerdes como crianças não entrareis no reino de Deus.” O que faz uma criança de tão importante para ser apontada como um lugar de encontro? Ela não marca encontros. Ela vive o encontro. A criança brinca o tempo todo, e Deus continua querendo que o homem aprenda a brincar. O trabalho de Deus é nos ensinar a brincar sem uma única machucadura, sem um arranhão no joelho, sem um trupicão na pedra. Essa brincadeira exige coordenação entre corpo, alma e espírito e leva a vida inteira para se aprender a brincar.  
 
O escritor  é como um artesão que trabalha com fios. O fio vem em um novelo e o escritor vai desenrolando o seu novelo e tecendo o seu trabalho. Quando o trabalho termina,  pode-se tomá-lo nas mãos, revirá-lo pelo avesso, e cortar todos os fios aparentes, de maneira que, aquele que for admirá-lo não encontre nenhum sinal do ponto ou da linha que foi desenrolado. Daí surgem os folhetins para as novelas mexicanas. 
 
O trabalho do escritor é uma escultura e quando se admira uma escultura penso ser interessante que se veja também o material de que ela foi feita,  e não apenas  a abstração da arte. Mas há escritores que não gostam, e escondem o recheio. Por fora, só aparece a perfeição. Nenhum minúsculo veio da madeira.
 
 E não é que tem gente que quase consegue escrever sem se revelar? Mas o texto fica insípido.
 
Insípido como aquelas mansões que são decoradas para a Casa Cor.
 
Certa vez em B.H.  paguei para visitar uma dessas amostras,  em uma mansão, à beira do Lago da Pampulha. Tudo muito lindo. E os decoradores até que tentaram humanizar o ambiente, deixando vestígios da passagem do homem na lua. No banheiro, havia um chinelo havaiana. Mas era branco, e estava muito limpo. Na vida real não existem chinelos havaianas brancos e limpos. Uma vez que você enfie lá o seu pezinho, ou o seu pezão, a brancura já era. E eles esqueceram de sujar o chinelinho e eu não vi mais nada, só vi a impostura de um chinelo branco. 

Não gosto de ser enganada. Aquele pequeno detalhe, tão limpo, tirou a beleza do conjunto e eu lamentei. Que lindo seria se o chinelo tivesse a marca do pé!
 
O escritor é esse que deixa fios aparentes. E deve mesmo deixá-los, porque o melhor de um texto está exatamente nos fios aparentes que nos permitem uma fisgadinha de leve, um puxãozinho indiscreto para desvendar o avesso da alma. Aqui no RL faço o meu laboratório de almas visitando os experimentos que me oferecem. E também ofereço os meus experimentos para que me saibam tão humana quanto sou e não tão divina quanto gostaria de ser.
 
Jesus não foi um escritor, outros escreveram por ele. Mas esses que escreveram deixaram tantos fios soltos mostrando o avesso de Jesus, que eu não tive outra escolha na vida, senão me apaixonar pela humanidade de Jesus. E a humanidade de Jesus, somada à sua divindade, tornaram-me adoradora de Jesus.
 
Infelizmente muitas pessoas lêem a Bíblia e não vêem a humanidade de Jesus. Por isso, não conseguem vê-lo nú. A beleza de Jesus está na sua nudez, mas a religião o mostra sempre com o manto pesado da realeza que, por fim, acaba escondendo tanto a sua humanidade, quanto a sua divindade. Por isso, os homens não o amam adequadamente, com a intensidade com que ele gostaria de ser amado.
 
Todo homem é um ser apaixonado que procura encontrar no outro o reflexo da sua paixão pelo pau, pela pedra, pelos bichos, pelo homem, pela vida. 

Paulo César Melges – de novo – escreveu-me:
Que lindo !! fiquei com os olhos molhados !!! Somos parecidos, você escreve com as palavras e eu com a luz, através das minhas lentes.”
 
 Não adianta: O que apaixona o leitor é o avesso do escritor. Como o que determina a memória de uma pessoa é, em grande parte, aquilo que o seu biógrafo faz, postumamente, com a vida dela. Lady Dy para mim só ficou bacana depois de morta: foi quando ela se me mostrou viva. Enquanto viva, Lady Dy parecia morta. Embora estivesse viva, era-lhe dado parecer morta.
 
Se você quer viver, sem deixar suas marcas,  não escolha escrever. Escolha ser gari na praia, recolhendo não apenas o lixo, mas também os grãos de areia. Tarefa rotineira, inglória e impossível.
 
 Ninguém escreve impunemente. Nem adianta tentar. Graças a Deus!
 
************************************************************
 
Paulo Cesar Melges é um artista paranaense maravilhoso que capta a vida através das suas lentes. Suas obras estão expostas na Galeria "Rouge", em Paris, na Galeria "Olhares" em Lisboa, e em algumas galerias de arte em São Paulo. Paulo César é meu amigo de longa data. Quem quiser conferir uma amostrinha do que ele faz, é só acessar a galeria de "Fotos digital Olhares" ou o seu orkut:
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 26/10/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1248822
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.