AS ALEGRIAS POSSÍVEIS. 
ANA MARIA RIBAS.
 
 Ontem foi domingo e hoje é segunda feira. Descobri ontem que Albert Camus, o escritor,  teve uma Janine na vida dele. Sou lenta para descobrir as coisas, mas por fim, descubro. Albert Camus teve uma Janine em sua vida, e  eu tenho uma Janice em minha vida, desde a década de 80. Descobri também que Camus tinha uma cara irresistível de galã americano com um jeito de cachorro que acabou de cair da mudança. Eu vi o galã e Janice viu o cachorro. Janice é sempre assim: quer oferecer um dono para cada cachorro sem dono que vive pelo mundo. Mas eu não posso deixar, porque na minha casa não cabem todos os cachorros do mundo.
 
Minha Janice é a heroína de uma história que escrevi sob a pretensão de chegar a ser um romance. Mas parei quando descobri, horrorizada, que Janice era eu, e que o fim que ela estava me sugerindo era muito revolucionário para uma época em que Che Guevara já havia morrido.  No começo, tive medo de Janice: era profunda demais para os meus poucos anos de vida. Mas como tenho levado a vida toda para escrever Janice, eu fui, aos poucos, amadurecendo com ela.  Escrevo Janice, no susto, sem pressa. E continuo a escrever.  Sei que nunca terminarei de escrevê-la.  De vez em quando, contemplo a sua alma nas páginas amareladas do meu texto e fico perplexa: como pude descrever Janice antes que todos os dias da sua vida fossem escritos? Como pude imaginar a dor de Janice antes de conhecê-la? Como pude prever para Janice um fim tão trágico, sem nenhum The End? O fim sem fim de Janice é que me assusta. Assusta-me o seu fim sem fim, porque já vivi o seu começo. E se não há meios nessa história de começos sem fim, ainda assim fica-me a pergunta:  como me foi possível criar um personagem que me enternece tanto e que, ao mesmo tempo, me inspira a coragem de estar um pouco viva, em sendo essa que sou? Eis aí um mistério.
 
Aos poucos vou publicando Janice por aqui. Já liberei dois textos extraidos da “vida” de Janice. Vou pinçando os textos que quero: Janice é minha! Eu que não sou minha, faço Janice minha.  Mas ocorre-me um problema: eu publico os textos de Janice e no dia seguinte deleto. Janice inspira um estilo muito triste, muito desamparado, e eu não quero inspirar ninguém mais a ser triste e desamparada, porque Deus nos ampara a todos e o desamparo de Janice, de certa forma, afronta a  Deus.
 
Mas hoje quero falar de XYZ que escreveu-me ontem “chorando muito.”  Pois olha XYZ a sua história é mais ou menos parecida com a minha história.
 
XYZ me conta em seu e-mail, que está cansada de ser professora numa escola, todos os dias da sua vida.
 
 Ela me conta que a sala de aula onde ensina,  tem uma porta. Que essa porta tem uma janelinha de vidro. E que do local onde ela se senta para corrigir cadernos, a janelinha de vidro enquadra o retrato do patrono da escola que foi fundada em 1900 e bolinha. 

Ou seja: o patrono já morreu faz tempo e passa o dia olhando para ela, e ela para ele. Diz-me  XYZ que já ficaram íntimos de tanto olhar um para o outro, e que essa é a única visão que ela tem durante as 8 horas diárias que passa por ali, afora as crianças. 

Mas as crianças, para fins de melancolia são alegres demais e não contam.
 
XYZ escreveu-me poucas linhas mas eu estou fazendo um tratado porque sei interpretar sentimentos. Sou uma tratadora de sentimentos profundos. Eu sei!
 
 XYZ revela-me, também, que anseia pelo momento de ser um quadro na parede, como o patrono da escola em que ensina. Que a vida tem-lhe sido uma lingüiça comprida. Que ela está cansada de ser mordida pelos mesmos cachorros, todos os dias, e que os pedaços dessa lingüiça parecem não acabar mais;  e que ao mesmo tempo, em que ela deseja que acabe logo, também deseja que a lingüiça tenha um outro sabor.
 
E por último, ela me conta que a escola está assombrada com o fantasma do senhor D.G. o tal patrono da escola. Que já chamaram muitas pessoas para orar e que nada parece mudar. XYZ quer saber se o fantasma do Sr. D.G. pode estar causando a sua depressão e me pede que ore por ela.
 
XYZ – eu vou lhe dizer uma coisa: Eu também estou assombrada com a vida, e nessa minha vida não há fantasmas, pelo menos não que me façam barulhos de correntes.
 
 Eu estou assombrada com a nossa capacidade de sermos previsivelmente iguais, sejam os personagens de romances ou da vida real. Eu também gastei 25 anos,  tendo na minha frente um quadro na parede. Não era de um patrono: era de uma patrona, uma grande mulher. Sua vida foi tão santa que ela jamais assombraria quem quer que fosse, a não ser pelos bons sentimentos que inspirou e pelos feitos que realizou.
 
Mas não vou fugir de falar de mim, falando dela. Eu me propus consolar você –XYZ- com a coragem de falar de mim, e é o que vou fazer nesta manhã sem mitos. Olha – XYZ - a vida também tem-me sido uma lingüiça comprida. E desconfio que, muitas pessoas que lerem as nossas vidas, nesta manhã de segunda feira, concordarão conosco: que sim, que as suas vidas também lhes são uma lingüiça comprida, com um dia emendado no outro e uma noite ao meio. Porque se não houvesse a noite aí já seria desgraceira demais.
 
Às vezes - XYZ - eu me pergunto: Poderia ter fugido da visão patronal e presumivelmente igual, durante cada um dos dias desses 25 anos? E respondo para você: Poderia, sim,  XYZ.
 
Numa época em que mulher de médico gastava os dias só gastando, eu fui a única desta cidade- e esta cidade me é testemunha- eu  fui a única que escolhi gastar os meus dias fora dos limites do meu castelo, como abelha laboriosa e operária.  Eu acreditei muito cedo que o trabalho liberta mesmo sendo uma maldição. E fui trabalhar para ser libertada. Mas não alcancei com o trabalho a espécie de libertação que procurava. Contudo, essa mínima compreensão não me fez desejar estar nos lugares em que estão as pessoas desocupadas. Muito cedo percebi que a libertação não viria do ter, mas do ser.
 
Durante 25 anos eu saí do castelo, todos os dias, para encontrar nas cercanias do meu reino crianças especiais, animais especiais e uma mulher especial: essa que vos escreve.  Eu fazia com que todos se tornassem especiais, inclusive eu. Eu tinha que ser especial para os meus especiais e fui, na medida em que me foi possível ser.
 
 Sim, é verdade que havia dias em que eu também encontrava o retrato na parede, e uma profunda melancolia me tomava, e me fazia desejar ser enquadrada, como você tem desejado hoje. Mas uma idéia me demovia da idéia de desejar ser enquadrada precocemente: a idéia de que há compromissos nesta vida que têem um significado maior do os horários que cumprimos, a rotina que desempenhamos  e o vil metal que conquistamos.
 
Aguentei firme, XYZ e sabe por que? Porque a única forma de ser livre é ganhando uma visão da eternidade. Uma visão que faça transcender os estreitos limites das prisões em que vivemos, e que nos transporte, todos os dias, para o céu que ainda não avistamos. Que só pressentimos. Que apenas aguardamos.
 
A vida – XYZ- é feita de rotinas, seja em Nova York, em Athenas, em Corinto,  ou em Paris. As pessoas se cansam, se enfadam e se comovem com as suas dores e com os seus amores e isso é rotina.  Mas a rotina também nos salva dos delírios megalíticos e da onipotência dos que pensam que podendo fazer, ir,  e comprar tudo, também possam comprar uma única nesga do céu.  Não podem.
 
Eu nunca pude tudo e continuo sem poder nada. Mas a minha aposentadoria de professora de crianças com necessidades especiais, é a minha lembrança mensal de que  mereço receber por um trabalho que desenvolvi com amor, com paciência, com persistência e com humanidade, junto às crianças especiais, das quais eu era a mais gravemente especial.
 
 Porque a humanidade  de uma pessoa, XYZ , não é medida quando a pessoa se transforma em  um retrato na parede, mas quando ela limpa o retrato com a reverência estampada na cara. A reverência que me moveu durante os anos mais produtivos da minha vida, e que, ainda hoje me move, quando encontro um daqueles meninos com necessidades especiais – hoje homens – e eles me beijam na cara, e seguram em minhas mãos, e me chamam de Ana, e  querem me levar de volta para um passado que não tem volta.  
 
Olha XYZ: poderia ter sido diferente? Poderia! Mas esse diferente, depois dos primeiros dias, passaria a ser igual a todos os outros dias,  porque até mesmo um dia diferente do outro,  torna-se um dia igual ao outro, nesse  diferente que acaba sendo igual ao outro diferente. Se é que você me entende.
 
Eu acho que a visão da sua janela só será ampliada com uma visão divina. Falo isso porque já experimentei outras paisagens, outros povos, outras culturas, e nunca me movi de mim. A coisa toda é essa mesmo. Céu em cima e terra embaixo. Os homens também são os mesmos. As mulheres também são as mesmas. A humanidade que derrubou as Torres Gêmeas, derruba as portas da nossa casa. O verde do Central Park é o mesmo verde do seu Parque Ingá, aí da cidade de Maringá. A gema do ôvo da galinha do vizinho pode parecer mais amarelinho, mas só faz um mísero omelete. Os temperos você continua tendo que acrescentar.
 
 Há um determinismo fatal que tolhe os nossos passos nesta terra que se chama ética responsável e há uma salvação que move os nossos corações e as nossas almas em direção ao céu e que nos livra da irresponsabilidade de querer largar tudo e voar como voam os pássaros em processos migratórios. Porque até os pássaros quando migram sabem o momento de voltar. E para nós humanos, retirar um pé significa não ter mais espaço para pô-lo de volta. Se você sai, outro- ou outra - entra e ocupa aquele espaço que era seu.  E que não será mais.
 
Eu vou te dizer uma coisa XYZ: eu não temo a morte, e nem o fantasma do senhor D.G. Eu só temo morrer sem ter Jesus comigo. Esse deve ser o seu único temor.
 
 Fiz como você me pediu: troquei as iniciais do seu nome, troquei a cidade, e ninguém saberá quem é você, porque até eu fiz questão de escrever pensando que não sei quem é você. Mas, uma coisa, quero lhe dizer: mostrar a sua fragilidade apenas lhe fez mais humana. Nesta manhã,  tomei a sua fragilidade para mim: frágil sou! Eu sou XYZ. Quem quiser, também pode ser: é de graça.
 
E mais não vou falar, para não ficar outra lingüiça comprida. Mas estarei orando por você -XYZ, para que as tristezas e as angústias existenciais que têm assombrado a sua vida, sejam amenizadas por uma visão celestial e divina. E se algum dia lhe faltar a visão, não se impressione com a repentina noite escura: chore e espere! A manhã sempre volta, o sol sempre nasce, Deus jamais nos abandona e crises existenciais são próprias dos seres espirituais.
 
Eu e Janice por aqui ficamos. Se precisar, escreva-nos de novo. Que o sr. D.G. descanse em paz. E que você viva as alegrias possíveis. Janice daqui me diz que  ela também deixa você sonhar com as alegrias impossíveis. Mas só um pouco, tá filhinha? Sonhe sem tirar os pés do chão, que de avião voar é “bão" e eu recomendo American Air Lines.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 27/10/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1250360
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