MUDANÇA DE RITMO.

MUDANÇA DE RITMO.
ANA MARIA RIBAS.

Eu não sei se revisitei o país vizinho ou se o país vizinho me revisitou. O fato é que voltei ouvindo “Borboletas” de Victor e Léo. Renovamos o nosso repertório de som e vídeo, tudo comprado no país vizinho, com o selo de autenticidade do país vizinho.

Quando se quer pagar pecados, deve-se começar a preparar a expiação um dia antes, e não reclamar da penitência. O país vizinho é essa espécie de penitência auto-imposta, porque tudo lá é despropositadamente amplificado. O calor é amplificado, a miséria é amplificada, a exploração é amplificada, a pirataria é amplificada, a tristeza é amplificada. O lado bom- se é que existe um lado bom- também é amplificado: As casas de alto padrão tem um estilo “aqui passou D. Pedro e não deu o grito da independência.” No meio da nobreza, nem todos aprenderam adequedamente as mínimas normas de civilidade, mas não faz mal, é “bão”. Para ver se a gente aprende e não volta mais. Mas sempre voltamos.

Às seis horas da manhã, já estou secando o cabelo para não atrasar a saída. Mas Ivo acorda indeciso se deve gastar, desse jeito, o seu último dia de férias.
-“Acho que vai chover. Vamos ou não vamos”?
-“Vamos sim.” Eu já estava quase pronta.

No minuto seguinte refaço mentalmente o caminho, me canso só de pensar, e aí sou eu, que querendo desistir, vou atrás dele: - “Ah, vai chover mesmo, é melhor não ir.”

Tarde demais. Ele já se programou para ir: - “E daí? Dentro do carro não chove.”

Apelo para argumentos mais consistentes: - “ o dólar está muito alto, não vai compensar.”
- “Vamos passear.”
- “Passear no país vizinho?!! Eu quero uma impressora multi funcional.”
- “E eu quero o presente de Natal das crianças.”

Moacir Mazzei quer a nossa companhia e nós queremos a dele. Impensável ir ao país vizinho sem a companhia amiga de Moacir Mazzei.

Na saída, um probleminha básico: o carro está sem uso há muitos dias, e a bateria foi para o espaço. Tetuchi é arrancado do sagrado recinto do lar por volta de 7,00 horas da manhã e em 5 minutos resolve tudo, mas avisa: “Esse carro está com problema “no rolamento da correia. Não dá para viajar com ele, não”.

Quem tem autoridade, manda, e quem tem juízo, obedece.

O carro fazia um barulhinho diferente, mas eu não ouço nada. Meus ouvidos estão ouvindo “A Força do Perdão” de Sérgio Lopes. Na ida, ouço Sérgio Lopes, na volta Vitor e Léo. Sou eclética e tenho que ser: acabou a bateria do meu MP4, na ida. E no país vizinho já se encontra o MP10, mas eu não posso jogar fora o MP4 que me serve tão bem só porque a tecnologia está adiantada.

Ivo e Moacir resolvem não atender aos sábios conselhos do Tetuchi. – “Vamos arriscar?”- ele pergunta virado para mim. Logo para mim que estou ouvindo pouco, com o fone no ouvido. Ivo não é de arriscar nada. Ele quer ir com esse carro porque o espaço no porta-malas comporta com folga uma bicicleta para Paulinha e outra para o Victor- saquei na hora.

Eu poderia ter ponderado que era melhor não arriscar mas a música de Sérgio Lopes estava me dizendo que a força do perdão perdoa tudo, e resolvo perdoar essa inconsequência: fomos.

Uma hora e meia depois estamos atravessando a ponte que nos leva ao país vizinho, sem nenhum problema. Combinamos de nos encontrar às 12 horas para almoçar no único restaurante brasileiro. Dessa forma ganharíamos tempo.

Depois do almoço, na hora mais quente do dia, a previsão apocalíptica do Tetuchi resolve se concretizar: o rolamento não rola mais. A correia estoura. O carro não anda. A vida pára a 40 graus centígrados na sombra. O porta malas está devidamente lotado com mil e uma bugigangas. A assistência técnica é precária. O povo não é hostil mas parece.

Eu entro no único shoping com ar condicionado e vou para a Praça de Alimentação: tinha levado um livro. Nunca saio sem um livro. Ivo e Moacir vão atrás de um mecânico. Que pede um absurdo pela mão de obra. Não há escolha: é pagar, ou pagar.

Antes, porém, Ivo entra no carro do mecânico, para ir até a loja que ele indica, comprar as peças que são necessárias. Moacir fica cuidando do carro e das compras. O carro do mecânico é um gol novo - com placa de São Paulo. No caminho, o mecânico recebe um telefonema. Fala no dialeto local. Ivo não entende, mas ele explica: “tenho que buscar as crianças para levá-las a escola." Eu teria pulado do carro, mas Ivo segue com ele. O carro avança por ruas e ruelas, até chegar a um lugar ermo: as crianças são lindas, alegres, barulhentas, e parecem felizes. Ivo conhece o carro do mecânico, a mulher do mecânico, a casa do mecânico e as filhas do mecânico. O mecânico é brasileiro e se chama João.

Ivo não é sequestrado. Moacir não está cozido. Eu não estou aborrecida.

A tarde passa em câmera lenta. O livro não rola: muita confusão no entorno para uma leitura adequada. Ouço vozes que me parecem familiares mas não são. Eu podia ter ficado em casa. Eu podia ter gastado melhor este dia. Eu podia não ter visto aquele pai brasileiro arrastando a filhinha - que lhe nasceu no país vizinho - numa caixa de papelão. Eu podia não ter tocado naquele cachorro sarnento que me olhou com tanta tristeza, no meio da rua. Eu podia ter economizado o meu dinheiro e ficado sem a multifuncional – já que a outra ainda estava funcionando. Eu podia ter ido à academia como vou todos os dias. Eu podia ter escrito o meu texto para o Recanto. Eu podia.

Mas se tivesse feito isso, não conheceria Vitor e Léo. Onde estavam Vitor e Léo todo esse tempo? Sei que os brasileiros já conhecem essa dupla há algum tempo. Mas Vitor e Léo foram-me apresentados no país vizinho.

Às vezes, nos acontecem coisas assim: as pessoas existem há tanto tempo mas nós não temos memória. Só intuição.

* Moacir, Ivo e eu, no país vizinho.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 28/10/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1253384
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.