Crônicas de Esquina 12 ( O Pedinte )

PEDINTE

Afinal, curvara- se. Talvez os esforços de algum amigo o tenham convencido a curvar-se. Havia apenas uma coisa: a necessidade imperiosa de sobreviver. Sabendo-se atirado ao limbo onde não se tem mais aqueles traços distintivos que nomeiam o cidadão, viu-se obrigado a desenvolver estratégias – meu Deus, até quando? – para que ainda não lhe atirassem à cova rasa a que todos os mendigos se destinam.

Era apenas uma sombra deslizando, ou um rato acuado, colado ao muro de uma esquina qualquer. Mas não que não fosse notado. Tinha a impressão, ou não, de um certo cheiro peculiar que o denunciaria causando repulsa a olfatos mais refinados. Haveria sempre uma inhaca entranhada na pele ou exalada pela alma decomposta. Não obstante, era preciso seguir. Ainda que não visse no mundo senão um ponto cego de um abismo qualquer onde aportam corpos que já nem choram pelo tanto que sofreram, era preciso seguir. Uma força ou teimosia inatas o içava para que não se subtraísse para aquém do resto exato em que já vivia.

Por isso, curvara-se. Não bastava a humilhação pela fome. Era preciso humilhar -se para exibi-la nas ruas, bares, lanchonetes. Era preciso tatua-la nos olhos para que todos a vissem estampada em tom de um pálido amarelo. Então era isso: domesticar os olhos para que em suas janelas se pendurasse tudo aquilo que havia de abjeto. Somente assim auferiam – se rendimentos que, ainda que tímidos, poderiam alimentar o hábito de continuar pedindo. Entretanto, justamente pedir era seu maior entrave. Aquilo doía como ratos que nos roem a carne quando estamos amarrados e tentamos não morrer. Também ele se chamava legião sem ser maldito. Também ele se assustava com os que com ele se assustavam. Mas era ele que sem ter pedido nada, tudo já lhe fora negado.

De minha mesa, percebo-lhe os movimentos. Hesita no meio – fio como se a rua estreita fosse um canyon impossível de transpor. Num relance, mexo nos bolsos da calça. Com quantas moedas eu poderia apascentar minha consciência que não se deseja culpada por nada que há no mundo? Se com elas eu lhe roubasse um pouco de gratidão, talvez eu me convencesse de que algo de nobre haveria em meu gesto.

Ele atravessa a rua e achega-se a um pequeno grupo que se aboleta entre copos de cervejas e tira – gostos. Sem ouvir-lhes os gemidos ou de esguelha escaniar-lhes a carcaça, alguém entrega-lhe um petisco e, mão abanando, enxota-lhe dali. Ele se volta e sinto seus olhos apontados em riste para mim. Aperto as moedas no bolso da calça. Sim, por que preciso delas? Do nada, ele rasga a boca num sorriso vazio, volta-se e se ausenta. O que carrega consigo eu não sei, mas o que ficou comigo incomoda como um cisco no olho.

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 19/03/2006
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