A INFELICIDADE É HUMANA. 
ANA MARIA RIBAS.

O filósofo alemão Immanuel kant disse o seguinte: “ Se a felicidade fizesse parte da natureza humana, Deus não nos teria dado a inteligência.”
 
Para os infelizes eu não precisaria traduzir, mas para os felizes, a tradução se faz necessária: “ todo aquele que é capaz de  estabelecer uma conexão adequada entre os seus neurônios, não é programado para ser feliz.” É próprio da condição humana – uma dose saudável de infelicidade naturalmente alcançada, a dura penas cultivada, a muitas lágrimas regada. Um dia, pacientemente, ela brota e isso é o selo da divina humanidade.  
 
 Kant,  ao que se sabe,  é figura festejadíssima no eixo Paris-Milão-Rio-São Paulo-Berlim.
 
 Em Cruzeiro do Oeste, não é muito, não. A moçada aqui não conhece esse tal de Kant.  Até porque juntei o povo dessa cidade e os ensinei a ver  alguns erros básicos, de ordem metafísica, na proposição existencial de Kant. Apresento agora a vocês os erros que identifiquei:
 
 Deus nos criou para a felicidade. Deus fez o homem com a corda toda para a felicidade, para a “amarelinha” num pé só,   para os jogos lúdicos que a vida proporciona. Da mesma forma como a criança nasce apenas sendo, sem indagar os seus motivos de ser, Deus nos projetou para a felicidade não abstrativa. Para as felicidades concretas.
 
Comer por exemplo, é um ato de extrema concretude. Pois é: Deus nos fez para comer. Deus também nos fez para amar. Amar é uma brincadeira que emociona e dá colorido à vida e rubor às  faces.  Deus também nos fez para sentar no banco do jardim, conversar,  e exibir na cara uma santa bobeira. E para fazer música: também para fazer música. A dança seria consequência - pois então, Deus também nos fez para dançar.  
 
 Todo bobo é feliz. Deus nos fez bobos, parvos, resumidos e portanto, felizes. Mas a condição de bobeira crônica foi considerada um ultraje à nossa capacidade evolutiva. O capeta sugeriu que pensar adequadamente seria melhor do que viver simplesmente. Escolhemos pensar, pois. E o pensar- pois-  nos trouxe para a categoria dos seres que evoluem, pois. 

 Evoluimos então, e continuamos evoluindo então, e essa evolução crônica  tem dado no que deu  e no que ainda se dará: um exército de seres infelizes.
 
 Agora sim, vou corrigir adequadamente o axioma de Kant. Que Kant conseguiu ser infeliz e burro, ao mesmo tempo. A leitura correta é esta: 

“Deus nos deu a felicidade como parte da natureza humana, mas o homem trocou a felicidade pela inteligência.”
 
E aí danou-se tudo.
 
Mas danou-se mais, porque nessa inteligência toda, o homem pensa conseguir assobiar e chupar cana,  com o seu mesmo e único beiço.   Ele pensa poder ser feliz e inteligente. Não dá!
 
Sinto dizer para a macacada toda, que não dá para conciliar os dois parâmetros. Não sem, pelo menos, sacrificar no altar alguns neurônios. E neurônios não são feitos para serem oferecidos como sacrifício no altar. Não por nós. Eles mesmos se oferecem voluntariamente para morrer em um dado tempo, e nesse tempo, não há muita coisa a fazer para contê-los -  quando eles decidem que querem morrer e nos tornar, um pouco, mais felizes, morrem mesmo. 

Mas em troca dessa morte, nós ficamos um pouco mais felizes - isso ninguém pode negar. Há que se celebrar adequadamente a morte de alguns pares de neurônios, mormente os localizados na área leste do quarteirão occipital.  Alguém já viu de perto, de pertíssimo,  uma pessoa com a “sindrome do alemãozinho?” Então veja: a felicidade é possível para todos aqueles que estão devidamente afundados no mundo do alemãzinho.
 
Eu não me preocupo com a síndome do alemãozinho: quem teria que se preocupar seriam os meus cuidadores. Mas literatura tem limite, e falar bobeira é pecado. Peço perdão então:  “Senhor Jesus, perdoa-me o abuso verbal e me cubra com o seu sangue. Também me dê saúde e me abençoe sempre com essa infelicidade tão necessária para me fazer lembrar que o céu não é aqui. Amém!"
 
A coisa toda é essa. Estou ácida assim, desde ontem pela manhã, apenas porque preciso dizer a algumas  pessoas bem mal intencionadas, que querem estragar a minha inteligência  com todo tipo de soluções mágicas: "não dá para ser feliz." 

Não consigo ser feliz e viver na redoma de um mundo redondo, completo e acabado, depois de assistir ao comovente relato do engenheiro químico Dr. Antonio Ratto, cujo filhinho Lucas Pereira está desaparecido desde o último mês de junho. Não dá para ser feliz e dormir placidamente depois de ver a bicicleta que ele comprou e posicionou bem no meio da sala, presente do Dia das Crianças, para o Lucas. Haverá dia das crianças para o Lucas? Haverá futuro possível para esse homem que chora sem ter mais lágrimas? Como se diz a um pai cujo filho esta desaparecido: “ Bom dia”? “Feliz Natal?” “Está tudo bem?” Se eu encontrasse esse homem, eu me encolheria toda em caracol.  Nenhuma mínima palavra sairia da minha boca. Há seres tão densos que perto deles eu viro ameba.
 
 Nesta manhã,  “sinto muito” é a palavra que eu escolho dizer.   Não dá para ser feliz, simplesmente porque sou um ser pensante. E com essa infelicidade já estou acostumada. Mas a tristeza não precisa fazer parte do pacote.

Por isso, tentarei eliminar a tristeza, jogando  luz sobre a natureza da alegria para os seres espirituais. Seres espirituais não são normais, diga-se de passagem. Seres espirituais se alegram com cintilâncias e se entristecem com reverberâncias. Uma coisa de nada nos entristece.  

Sou um ser espiritual por excelência. Tudo bem, já sei, vou completar o seu pensamento: sou um ser espiritual que habito um corpo material. Mas a infelicidade crônica me exime de grandes tristezas. Em compensação o gatilho que detona a mínima tristeza é quase imperceptível. As pessoas não se dão conta de que pouca coisa já me entristece.  E essa pouca coisa que  me entristece é que vivo cercada de seres pensantes, mas alguns desses seres pensantes me interpretam de maneira tão rasa que não sei como conciliar a minha profundidade com essa rasura toda.
 
Não sei se o que escuto é porque o sapo na lagoa coaxa, ou é porque a lagoa geme com tanto coxear. 

 O que sei é que: não me ofereçam o que tenho de sobra, não me insultem com conclusões óbvias, não me interpretem segundo as suas breves sinapses mentais. Eu penso, logo existo e existo do jeito que Deus me permite existir.
 
Eu poderia invocar o apóstolo Paulo em seu gemido histórico para vir em minha defesa: “  Pois também nós os que estamos neste tabernáculo gememos, angustiados, não porque queremos ser despidos, mas revestidos para que o mortal seja absorvido pela vida.” 

Vou traduzir para você: o apóstolo Paulo não queria morrer, ele queria viver; mas a morte, sob a perspectiva da fé cristã, é um processo de reabsorção, o mortal sendo absorvido pela vida inerente, por essa qualidade de vida que só Deus tem para nos dar. Foi isso o que ele disse e isso eu assino embaixo.
 
Não há mansões em Alphaville, não há viagens, não há carros, não há a possibilidade de felicidade permanente que possa ser obtida a preço de coisas tão fedorentas. Privadas de ouro servem para o que mesmo? Então tá.
 
Vivo pois sob a égide das proposições de fé do apóstolo e não sob a égide das proposições de vida de Patricia Paris Hilton.
 
O que não significa que sou um ser totalmente desprovido de alegria.  Tenho as minhas íntimas alegrias! De vez em quando apresento recaídas históricas e se, por acaso,  alguém passar e me ver sentada no banco da praça, com cara de boba, compreenda, releve e me deixe entregue a essa bobeira apenas circunstancial. Uma hora passa.
 
Pois é. Também faz parte da vida dos seres inteligentes ter alegrias brevíssimas. Ontem, depois das 18 horas,  eu tive uma alegria brevíssima. Fiquei "passada" com o momento de brevíssima alegria que me tomou. 

Mas essa alegria é minha, dinheiro não compra, ilusão não  vende, e como diz a filósofa Mariníssima – a quem peço licença para emprestar o pensamento altamente filosófico: “ a vida é minha, o pObRema é meu.”
 
Nesta manhã eu quero celebrar a alegria, porque há dias em que a minha infelicidade crônica me enjoa. E Plasil pode até pertencer a  um laboratório famoso, ser marca internacional, ter patente reconhecida,  mas  não cura.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 05/11/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1266977
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