UM LUGAR DE VOLTAR. 
ANA MARIA RIBAS.
 
As descobertas sempre me impulsionam, e as similaridades sempre me comovem. Quando vejo o meu gato, o Alemão, voltando para casa, depois de umas incursões desbravadoras pelo quarteirão em que moramos,  eu penso: “ Quem ensinou você que aqui é a sua casa? Quem lhe disse que aqui é o seu lugar de voltar?”
 
Então eu me comovo, porque ele sempre volta. Ele volta porque se sente acolhido, e não voltaria, caso se sentisse desprezado. Ele volta porque encontra afeto, e não voltaria, se encontrasse pancada. Ele volta porque encontra comida, e não voltaria, se o prato estivesse vazio. Ele volta porque encontra a segurança emocional que todo ser vivo precisa para não viver eternamente sobressaltado.  Alemão gosta de pertencer. Alemão sabe que me pertence e eu sei que pertenço ao Alemão. E nesse mútuo pertencer, eu espero pela volta do Alemão.  Então, ele volta. E quando ele volta, eu me volto. Por um segundo, nossos olhares se cruzam e nossas diferenças se resumem a um rabo. Apenas a um rabo. A sua plasticidade me impregna e a minha gravidade o embebe: a simbiose entre dois seres vivos se instala.
 
Depois, eu olho para a Nalva. Nalva também me comove. Todas as manhãs ela chega timidamente, pesadamente, secularmente, e depois vai se soltando, até voltar a ser criança.  No muito fazer dos braços, ela desata o corpo todo e, distraída acaba libertando a alma. Nessa libertação, ela me surge inteira. Inteirissimamente Nalva. Não a Nalva que rege o coral da igreja, e que se equilibra precariamente sobre um salto fino, mas a Nalva pecadora redimida convicta de que o sangue de Jesus a justifica de todo pecado, até mesmo do pecado de andar descalça, sujando apenas o pé. O pé pode. Jesus disse que o corpo estava todo limpo, mas o pé precisava ser lavado. Porque o pé toca a terra.
 
 Nalva também sempre volta. E volta, não apenas pela necessidade de ganhar o salário mínimo,  mas pelo máximo afeto que eu lhe dou, pela alegria brevíssima que a companhia dos tristes lhe proporciona. Nalva também sempre volta. E ai de mim, se Nalva não voltasse. Às vezes, tudo o que me sobra da presença dos vivos, atende pelo nome de Nalva.  

Do Alemão para Nalva, e de Nalva para o Milton. Milton consegue me tornar uma pessoa ainda mais comovida. Milton é quem faz a limpeza diária da piscina, e cuida, mensalmente dos limites estreitos do meu jardim. Que, a bem da verdade, não é mais um jardim, não por culpa de Milton, mas das cachorras. Para limpar a piscina, Milton liga um potente aspirador que gasta os tufos de energia,  e obviamente,  usa também a energia dos seus braços. Faça chuva ou faça sol, seja primavera ou verão, Milton  volta. 

Então, nessa compreensão equivocada de que voltar poderia ser um verbo inútil, eu disse para o Milton: - “Ô Milton, o verão está longe ainda. Não há necessidade de limpar essa piscina todo dia, não há necessidade de ligar esse aspirador. Relaxa um pouco, Milton: venha só 3 vezes por semana.”
 
Ele concordou, sem oferecer nenhuma resistência. Mas toda manhã, às 5 horas da manhã, ouço a chave abrindo o portão de serviço,  pressinto os passos do Milton deslizando pelo corredor, adivinho a luz que se acende, a alegria dos meus gatos e cachorros libertados precocemente, ainda no escuro, ainda na madrugada, porque Milton volta. Tendo o céu por testemunha, e a última estrela da manhã por invocação, Milton cumpre a  muda vocação para o dever diário e profano do cloro que mata as bactérias e da barrilha que limpa.   Milton também sempre volta.
 
 Ivo também sempre volta. Sai ainda de madrugada, mas lá pela hora do almoço, ele volta. E os meus meninos de rua,  sempre voltam. Voltam sob qualquer pretexto: um caderno que está faltando na bolsa da escola, um prato de comida que está faltando na barriga, um par de tênis que está faltando no pé. Eles voltam. Como também sempre voltam os meus gatos de rua, em busca da ração que eu deixo toda noite na porta da sala da minha casa. Eles todos sempre voltam. Aos bandos, travando luta corporal uns com os outros, numa danação que me acorda quase toda madrugada, mas também me dá um sentido bom para existir: sei que existe alimento para o mundo faminto na porta da minha casa. 
 
E as andorinhas? Todo verão elas voltam. Elas me despertam ao amanhecer. E nesse acordar festivo da andorinha, para a urgência do seu próprio  viver, uma cintilância de mundos opostos se fundem e se entrelaçam, e, quando pressinto, meu corpo já está em pé, meus pés já estão dentro do chinelo, e as minhas mãos já fazem café. Acordo quando mastigo o pão. É tarde, já nasci de novo. E as andorinhas, essas vão e me deixam com a estranha sensação de que a alegria foi só uma ilusão.
 
Nesta manhã de cintilâncias de andorinhas, eu quero dizer que estou comovida com a volta de vocês. Vocês sempre voltam, e eu me pergunto: por que voltam? E eu me respondo: pelo mesmo motivo que eu também volto - porque somos seres destinados a voltar quando nos sentimos assemelhados, acolhidos, amados, em algum lugar. Então, voltamos a esse lugar. Voltamos também porque criamos o hábito de voltar e voltar nos remete à gênesis, ao princípio de tudo, e por inferência ao nosso fim. Somos seres eternamente vocacionados para o fim, na medida em que compreendemos que a nossa libertação se encontra lá: no fim.
 
O fim nos libertará da compulsão de voltar, o fim nos libertará da doença crônica de existir, o fim nos libertará do cativeiro da corrupção, o fim nos libertará do ensaio para a grande estréia.  

Mas enquanto não chega o fim, que haja a volta. A volta nos aproxima: eu de vocês e vocês de mim. A volta nos comove porque pertencemos: eu a vocês e vocês a mim. A volta faz de nós seres apaixonados: eu por vocês e vocês por mim.
 
Nesta manhã, eu quero celebrar a sua volta porque a sua volta é o álibi que justifica a minha vinda. E talvez, a minha vida.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 07/11/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1270576
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