Uma velha agenda

Estamos em 1982. Não é que o tempo tenha cristalizado o instante. Não. Folheio apenas uma velha agenda daquele ano, achada numa estante solitária, recoberta de de pó.

O amarelo de suas páginas testemunham o degredo a que foi sentenciada por anos a fio.Poeira e traças se conjugaram na refrega cúmplice da obra devastadora, iconoclastas que foram de imagens da vida, contornos de um cotidiano a mim, tão distante , hoje.

Estamos em fevereiro. Esdrúxulas anotações. "Esse é o perfume que ela gosta". Ela ? Quem seria ? Quando fiz essa observação não necessitou-me grafar o nome da musa. A desconhecida do presente adornava meu mundo de outrora, atiçava minha fogueira de ilusões. Não recordo o perfume da mulher , sequer lembro da sua imagem.

Em maio vi levantes internacionais, atentados. Percebu o leitor a amplitude das notas. Registrou-se o primeiro porre e anotaram-se os livros emprestados (vejo nomes de colegas que a memória já combalida não invoca com fidelidade os traços). Se houve espaço para tantos grifos , maior foi o coração que assistiu e participou dessas emoções.

Cada página dobrada remete-me à época dos acontecimentos e a serenidade daqueles dias não ressoa no turbilhão de agora. Ideais e amigos de antanho viajaram, inclusive as utopias, os sonhos também , creio eu, todos velozmente sumidos nas asas dos anos. Minimizou-se a importância de uns, empertigaram-se outros, sublimaram-se todos.

Se não compareci ao encontro marcado, outras ausências se fizeram notar. Pergunto-me pelo rumo que teria tomado a minha história de vida caso as decisões fossem outras. A humanidade continuaria sua letárgica e omissa marcha para o ocaso, ignorando se os meus gestos tivessem algo de heróico ou de covarde. Covardia e heroismo se confundem sempre. O que são as guerras , o amor e a paz em face das decisões de um só homem? Se não acertei o ritmo daquela dança, em plena noite de estréia no salão do primeiro amor, outras festas aconteceram e evoluções melhores se fizeram notar em pistas mais exigentes. Já não choro pelos erros cometidos, senão pelo desejo de delinquir novamente.

Aquelas páginas não mentiram nem absolutizaram verdades; são, potencialmente, um pouco do que me tornei: chama a creptar, transformação e luta atroz na arena da história. A velha agenda não é mera depositária de um passado que grita a efemeridade das ações humanas, antes é o convite altíssono para a celevração perene das mudanças da vida.

Cada página dobrada remete-me à época dos acontecimentos e a serenidade daqueles dias não ressoa no turbilhão de agora

Wanderlan
Enviado por Wanderlan em 23/03/2006
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