Chove sobre mim

Quando chove minha alma pára. Não sei se julga a chuva ser freio posto à realidade ou é a lentidão da chuva que submete a velocidade dos meus instintos ao rígido controle da serenidade. Sei somente que minha alma pára. Pára e retorna no tempo. È a minah admirável máquina de retorno no tempo.

As estações das chuvas talvez por posuírem esse estranho poder de me remeter ao passado do que sou, ao terminarem me jogam no tempo presente mais audacioso e certamente mais desconfiado de mim próprio: quanto mais revivo feitos de outrora, mais creio firmemente no caráter duvidoso dessas ações. Sempre que os céus cerram suas portas, o sol me encontra bem perto do limite de existir e o resplendor dos raios dobram a negritude porventura contemplada. A chuva me molha de saudades, ensopa-me de esperanças e banha-me de convicções que os dias afogueados não me podem dar.

Choveu sábado à noite. A profusão das águas foi maior que meus diques de consciência podiam represar. Enquanto os olhos fitavam o teto, os respingos fortes me empurravam a outros tempos. Recordei comportamentos do passado, lembrei o desempenho em determinadas situações que a vida me colocou< lamentei esta ou aquela resposta morta antes da palavra pronunciada. Percebi o quanto fui frio no dia em que me pediram determinação. Contemplei , entristecido, os muitos nãos que dei a tantas pessoas e situações merecedoras de redondo e sonoro sim. Abri tantos risos diante de escárnios e chorei vezes sem conta frente ao cômodo. Pus máscara a gente que me convidava ao desnudamento. Construí túmulos por sobre histórias que careciam de infusões de vida. Menti à verdade. Mantive os braços colados ao corpo quando, a um passo de mim , alguém pedia um afago que fosse. Exagerei, ri em demasia e mostrei-me forte quando, meu peito fraco e abatido, reclamava repouso. Fui torpe e insano em momentos que o reto senso recomendava lucidez e bom caráter. O heroísmo passou ao largo dos meus gestos e a vileza me alcançou na maioria deles.

Ao amainaar da chuva, o cheiro de terra molhada e o presente se impuseram. Ri do ridículo que fui. À ridicularidade do passado, juntei a seriedade e a calmaria de agora. Tornei-me mais sensato, mais razão e muito mais consciência, menos risível.

Como interpretará os procedimentos desta noite de sábado o próximo inverno ? Manterá firme a idéia de que as divagações dessa noite não foram em vão ? Acreditará em mim o homem que serei no ano vindouro ? Quiçá tomá-la-á por igualmente desprezível como são , sem rastro de dúvidas, o fio de todas as inquietações humanas.

Wanderlan
Enviado por Wanderlan em 23/03/2006
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