O ÚLTIMO VERÃO

          Josa Jásper                    

É meu último verão! A gente sabe: palpitações no peito, tremores, falta de ar... essas coisas. Nem a caneta obedece quando sento para escrever minhas bobagens. Assim, não resisto até a chegada de outro verão! Afinal, tenho 80 anos bem vividos. De algum modo, já estou farta dos dias. Deixo um rastro de luz? Espero que sim! E, mesmo sem grandes méritos, pelos méritos de Cristo, não temo o castigo eterno; muito menos a morte: um dia sobrevirá a todos!         

O sol bate gracioso em meu janelão, até o centro da sala. Tem uma menina se balançando no parque. Sorri, satisfeita, quando ultrapassa a copa daquele arbusto. Já devo tê-la visto outras vezes, mas hoje sua imagem me encanta mais, por tratar-se do meu último verão.           Mamãe morou aqui. Será que brincava de balanço, como eu? Para mim, é um privilégio morar tão perto e observar as crianças no balanço. Aliás, acho que a vida é uma espécie de balanço, que vai nos jogando, pra lá e pra cá. Só que, às vezes, nos dá um empurrão mais forte, a gente voa do balanço e não volta mais. Aconteceu com meu marido há 23 anos atás. Como ele estará lá em cima? Éramos tão ligados um ao outro...          Natal me amava muito! Cria, como eu, na vida eterna, mas costumava dizer que ia ficar sem jeito de entrar no Céu sem estar de mãos dadas comigo. Uma vez me perguntou se nosso Senhor ficaria triste se ele pedisse para me esperar, junto aos portais eternos. "É claro que não" - respondi-lhe - "mas... e se eu chegar lá primeiro?" - "Não, meu amor, eu ontem não a acordei, mas cheguei a suar de dor no peito. Nem queria lembrar..."  - "Então, não me fale agora. Você acha mesmo, Natal, que me serviria de consolo sobreviver à sua partida? É Deus quem retém o último grão da ampulheta de vida de cada um! Será que você nunca viu pessoas se recobrarem após crises bem piores que as suas? Você superou o enfarte. Tem apenas uma angina malvada. Tente dormir! Quanto a esperar por mim nos portais celestes, se você chegar lá primeiro, não acho uma boa idéia. Bem que você poderia dar uma entrada, conhecer os recantos mais lindos e só depois vir me esperar junto aos portões de pérola para, aí sim, mostrar-me cada detalhe do que viu." Acho que ele concordou, pois deu um gostoso sorriso e adormeceu. Estávamos iniciando o ano de 1973. Dia 30 de janeiro ele teve uma síncope cardíaca e faleceu. Como me havia dito, não passou de janeiro. E eu lhes digo que não verei outro verão!

Agora chegam dois garotos à gangorra. O magrinho pede ao gordo que chegue bem pra frente, para compensar o peso. A relação entre as pessoas também tem ares de gangorra. Só que, às vezes, deixamos os pesados lá em baixo, às voltas com o peso de sua angústia. É preciso descer para que o outro suba. Esses meninos sabem partilhar interesses: cada um se contenta com um breve gozo da altura, a fim de que o outro também a goze. Na vida é diferente: todos querem liderar, porque sabem que o liderado tem que despender sabedoria e energia corporal para que o líder suba. Mas já imaginaram se só tivéssemos chefes neste mundo, sem ninguém disposto a obedecer? Todos mandando ao mesmo tempo?

Olhem lá o outro, nos manilhões escuros... Sempre gostei de entrar naqueles manilhões : primeiro, a gente tem que ficar de quatro. Só assim se consegue avançar. Que lição! A caminhada é tão longa que a boca da saída atemoriza, de tão pequenina que fica, quando olhada à distância! O segredo está em em aproximar-se sempre: a luz no fim do túnel é tudo o que se busca! Ainda a busco na vida. Talvez a vida não passe de um túnel, em cuja boca Natal me espera! O manilhão dá medo: após o meio, há um ligeiro aclive e algumas crianças voltam, mesmo depois de ingressarem na metade final. Aí os joelhos já doem ou ficam feridos...

Na vida não há retorno,a volta não existe. Somos forçados a prosseguir num só sentido, até que não haja mais caminho ou todos eles se nos descortinem, com preferia meu esposo pensar.

Era assim que Natal concebia a Eternidade. Que bom ouvi-lo falar da morte, como algo bem natural. De fato ela o é, mas poucos aceitam isso! Até o último pedacinho de nossa vida, a morte não existe, pois ainda não a estamos experimentando. Então, por que temer alguma coisa que não existe? Quando morremos,aí nós é que não existimos, nessa feição natural, conforme nos conhecemos. Os sentimentos naturais são abandonados, inclusive o medo. Por isso o medo também não persiste, depois que a morte nos sobrevem. Natal dizia que a coisa era simples: se vivemos, vencemos a morte; quando ela nos vence, vencemos o medo. Logo, o medo da morte é irracional, tanto aqui como no Além! Vejo-a como um cão acorrentado, incapaz de achegar-se a mim, enquanto eu viver. Quando o Dono a solta, me surpreende: corre de satisfação e vem lamber-me o rosto.

Lá está o pipoqueiro. Não gosto dele: vive dando toco errado para meus netos. E daí? Eles não conferem!... Mas eu acho que os adultos deveriam ser imitados , e não fiscalizados pelas crianças. Eu morreria de vergonha se se uma criança me reclamasse um troco retido! Esse, não está nem aí! No meu tempo, o Zé Pipoca nos dava dois sacos pelo preço de um, quando a Hulda vinha junto, só porque ela era pobre. Um dia perguntei se assim não ficaria pobre como ela. Ele me explicou que quem dá aos pobres empresta a Deus, e tirou do bolso um cartão velho e amarrotado, onde eu li: "DINHEIRO ACUMULADO É PODER NÃO DESFRUTADO". Hulda era tão magra! Na hora, pensei que o Zé desfrutava do poder de mantê-la viva por não acumular dinheiro com as pipocas que lhe dava. Seria isso?

Oba! A lourinha deixou o balanço! Por que esta vontade súbita de ir lá me balançar, como criança? Será que o guarda vai deixar? Lá diz que é proibido para maiores de 10 anos... Com que direito se apropriam de um balanço que conheci primeiro e já foi tão exclusivamente meu, quando menina?

É melhor escrever uma crônica... Bobagem! O que é que uma velha como eu tem para escrever sobre o verão? Teria que ditar para a Aninha, pois escrevo devagar, com essa tremedeira nos dedos. Não vai dar certo: ela sempre ri do que escrevo!... A Tita está sempre ocupada...

Decidi! Vou mesmo é pro balanço, antes que a turma volte! Aline disse que o guarda Régio é amigo. Até ajudou-a a subir no escorrega! Se não me deixar sentar no balanço, vou dizer que é o meu último verão. É isso aí!

Ah, se eu pudesse embalar meu corpo para além das nuvens! Não sou tão velha: seguro firme nas correntes, "remo" com o corpo e ficarei paralela à trave... Esperem! E se eu cair? Tolice! No máximo, bato com a cabeça numa pedra e morro. E não é bom morrer fazendo o que se gosta? Eu é que não fico em casa, no meu último verão! Quem sabe não estarei vendo o sol pela última vez? Depois...Bem, depois é só entrar no túnel! Natal não disse que estaria me esperando do outro lado?