Descanse em paz

Um amigo meu, pessoa de bons valores e de uma inteligência direta e cativante, dia desses, assim como quem dispara uma flecha na direção de um alvo próximo e imóvel, me disse que eu não gostava de gente.

Aquiesci, meio sem graça, tratando de fechar os poros que eventualmente me delatassem, como numa mágica ilusionista na qual o personagem sempre esteve ali, apesar da visão indicar outra coisa. Não fora uma flechada. Aquilo foi um tiro, e só não acertou o coração porque tinha mesmo que acertar o pâncreas, dificultando ao limite a digestão do que havia entrado indelevelmente, destinado a ficar alojado na alma e marcado como uma borra ao longo da vida.

Gostar de gente, até então, era o minimamente esperado de qualquer ser humano que vestisse uma camiseta, uma bermuda e velhas sandálias de modo a encarar diariamente as luzes e cores da cidade. Eu, barba por fazer ou não, jamais me furtei de botar a cara no mundo, seja pra comprar jornal, seja pra pedir alguém em casamento ou, ato máximo da humanidade, pedir gentilmente pro zelador um rolo de papel higiênico.

Gostar de gente era o óbvio. Tão óbvio que jamais passou por minha cabeça a simples hipótese de existir alguma outra opção. É como andar ou dormir. Comer. É como morrer.

Nelson Rodrigues gostava tanto de gente que – sempre me pareceu – se escondia dela pra não perder o poder de sintetizá-la. Henry Chinaski gostava tanto de gente que vivia envolto a ela em devaneios etílicos e solidões pervertidas.

Eu não. Não era ninguém. Não ser ninguém era o apogeu da condição humana. Era a vitória estampada num corpo de um e setenta e alguma coisa. Dormia igual aos outros, acordava e comia pão igual aos outros. Igual aos outros me encaminhava ao trabalho e trabalhava invariavelmente para alguém que não conhecia, indo, esporadicamente, beber como os outros e dormir um dia mais velho como todo mundo.

Eu era a imagem e semelhança do sucesso. Um sucesso retumbante oriundo da integração. Estava pro mundo como a tinta pro pintor. Eu fazia parte daquilo e aquilo me bastava. Podem incluir aí o cinema americano no fim de semana, a pizza de vinte e cinco reais e as opiniões sobre o sistema monetário nacional.

Não gostava de algumas pessoas mesmo não. Gente melosa, exagerada, pernóstica. Gente vazia ou cheia demais. Mas gostava de outras coisas. De cachorro, por exemplo. Gostava da vista de meu apartamento, de frente pro elevado da Paulo de Frontin. Gostava tanto do Botafogo. Gostava de mais algumas coisas, especialmente de torrada com manteigas.

Aí veio o cemitério.

O morto estava lá que só ele. Algodão nas narinas, uma seda branca bem fininha por cima, flores em profusão, predominantemente brancas e amarelas. Se não eram margaridas, eram muito parecidas. O caixão me parecia ser de madeira maciça, algo que num primeiro momento causou certo desconforto. Pensei na camada de ozônio.

Algumas pessoas choravam. A maioria, a esmagadora maioria, conversava. No meio dessa gente toda, alguns vários sorrisos e, até – nada mais frugal pra uma manhã de quarta-feira –, gente marcando um chopp pra depois do trabalho.

E o morto lá. E a viúva ao lado dele.

Era uma sala, com seus, vá lá, vinte metros quadrados, na qual repousava o caixão de jacarandá e três arranjos de flores, provavelmente reaproveitadas, com as frases de estilo para a ocasião, dentre as quais a acachapante “descanse em paz”, como se o coitado tivesse outra saída.

Do lado de fora da sala, ao lado da lanchonete que servia toda sorte de biscoitos e refrigerantes - além de cerveja em lata (quem seria o filha-da-puta...) -, ficava a maior parte dos convivas, com o perdão da ironia.

Três cenas, no entanto, me chamaram a atenção. Se eu ficasse mais de meia hora, seriam mais, com toda a certeza.

Ela provavelmente acabara de fazer quinhentos gramas de biscoito de goiaba antes de chamar o táxi que a levaria ao Caju.

Não teve seu nome dito, mas era uma vovozinha de seus 75 anos. Mesmo com o avanço da medicina, não emplacaria muito tempo. Devia estar tomada pela osteoporose, visto que se locomovia a passos de cágado, arrastando-se pelo piso frio do cemitério dentro de um vestido preto e um agasalho caramelo.

Ao ver a viúva, chorando aos cântaros, candidamente a puxou para seus frágeis braços e disparou de bate-pronto: “- eu tenho certeza de que ele está arrependido de tudo, e, se ele pudesse voltar, faria tudo diferente”.

Cristina estava na casa dos cinqüenta, talvez um pouquinho mais. Estava com os filhos e conversava com outra senhora, cujo nome não foi mencionado, à beira de um parapeito virado pra centenas de jazigos:

- Essa doença é terrível. Deus me livre. Vai definhando aos poucos, cozinhando a pessoa. Você sabe como ele morreu? Sofreu muito?
- Não sei, mas parece que não.
- Duvido. Perdi uma tia assim. Sofre muito. Ele e a família. Misericórdia.
- É, mas acho que com ele foi melhor. Deus foi bondoso.
- Duvido. ‘Me desculpe’, mas duvido. Esse tipo de coisa é cruel demais. Tenho certeza. Sofreu muito. Minha tia sofreu, porque ele não iria sofrer? Sofreu sim, eu sei... E não deve ter sido pouco não. Ouvi dizer que estão economizando nos hospitais. Deus me livre.


Andei menos de cinco metros e alguns segundos. Ao lado do caixão, disparado o lugar mais discreto do evento, duas filhas-da-puta:

- Horrível isso tudo né?
- É.
- O pior é ser enterrado, ficar apodrecendo. Depois do enterro dizem que roubam tudo.
- Já ouvi dizer. Mas será? No de Inhaúma nunca ouvi falar disso.
- Também né? Vão roubar o que em Inhaúma? Porra, Suzana.
- Fala baixo. Ahahaha. É mesmo... Só você mesmo...
- Ahh minha filha... Na dúvida quero é ser cremada.
- Tenho medo. Ui. Imagine, cremada.
- Ih. Não sente nada não, sua boba. É melhor do que virar comida de verme.
- Qual é o nome do morto mesmo?
- Não sei. To com vergonha de perguntar pra mãe dele. Vendo Natura pra ela. Chega a comprar quase duzentos por mês. To preocupada com a morte dele. Acho que ele dava mesada.
- Ai, menina. Bate na madeira.


Ela bateu. Uma pequena flor chegou a cair.

Meu amigo não tinha razão.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 12/11/2008
Código do texto: T1279347
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