Lendo o jornal “Correio Popular”, de Campinas, eis que deparo-me com uma crônica que, maravilhosamente escrita,   transmite a quem a lê,  um sentimento  de amor e de compreensão em relação ao tempo. O autor,  Rubem Costa, é escritor e membro da Academia de Letras Campinense, e, com sua permissão publico aqui,  “ipsis litteris”, a sua belíssima crônica.

                       
Junto ao arco da estrada

 

                                     Rubem Costa

 

                   Numa visão introspectiva do ser humano, Xavier de Maistre, escritor francês do século XVIII, escreveu um romance célebre  – “Viagem em Redor de Meu quarto” – que serviu de espelho até na elaboração de “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, como o próprio Machado de Assis confessa no prólogo do livro. É uma revelação do ser que se desnuda ante os seus próprios surpreendidos olhos. Nesse rastro, quando já  me beiram os noventa anos, vejo-me  também na contingência de olhar  para dentro de mim mesmo, na tentativa de espanar a mente  da inércia reflexiva e lubrificar as articulações enferrujadas que emperram o caminhar de um corpo vivo. Claro e indeclinável é que, no proceder,  defronto-me com  a certeza inafastável de que no desenrolar da existência se impõe a trilogia fatal da vida, como em verso escrevi há tempo:

                                     

Em criança olhou a vida,

                                      viu a vida embevecida.

                                      Era a luz que emergia,

                                      era a manhã que surgia.

 

                                      Quando jovem, olhou a vida,

                                      Viu a vida apetecida.

                                      Era a luz que resplendia.

                                      Era o sol do meio dia.

 

                                      Na velhice, olhou a vida,

                                      viu a vida esmaecida.

                                      Era a luz em agonia,

                                      Era a noite que descia.

 

         Entanto, no desenrolar das estações, a caminho do inverno, nada impede ao homem que se debruce sob seu alpendre, quando ao cair da tarde, o sabiá vem trinar no arvoredo. Booker Washington, poeta negro dos Estados Unidos, num entardecer de dia chuvoso, escreveu um poema à vida, dizendo -:

                            Ontem é o nome de um sol posto,

                             temos o amanhã diante de nós,

                             Junto dos arcos da estrada,

                             chegamos. Marchemos!

         É um apelo que convida a pensar na roda do tempo. Esquecida da rapidez das horas que passam, a ironia do jovem é flagrante contra a existência que passa. Não percebe que o pôr do sol é apenas o dia que envelheceu, mas conserva dentro da tarde os salpicos de luz da manhã. Fala-me à piedade a voz do moço, quando dele parte a chacota de que o problema de velho é apenas uma questão de junta. Junta tudo e joga na cova -.”Osso e ovo” – Insciência do próprio existir.Ouço a brincadeira cruel e escuto a lição de Xavier de Maistre. Olho para dentro de mim mesmo e descubro o tempo guardado que fala do sol de um mundo que já não é. Penso então em Booker Washington e me convenço que a transitoriedade do dia é a grandeza do amanhã :  nada   de chorar na prece do ângelus, nem de  andar por aí agarrado na  bengala da lamentação, arrastando  o  casco na calçada e mijando no pé. Sueli, a síndica do condomínio onde moro, descorçoada com a trabalheira que dá o conserto e a pintura dos prédios, num desabafo, disse outro dia que reformar coisa velha é uma porcaria. De princípio protestei mas, logo em seguida, concordei amplamente. O homem, enquanto desliza no tempo, não deve mesmo pensar em se reformar. Reforma é mudança, substituição, troca do que já não serve pelo novo que nem sempre se conhece.  Na linguagem militar, reforma é sinônimo de aposentadoria. Descanso para a farda. General reformado passa a usar pijama, roupa incômoda de “dolce far niente” para quem a vida passou dando ordens : “ordinário, marche!” -. Vai para as traças. Perde o encanto dos sonhos. Perde o sentido da vida. Por certo morrerá de tédio, se não tiver a sabedoria tão simples de que evolução é movimento progressivo que garante o viver em novas formas. É isso. A gente não deve pensar em reformar-se, mas em conservar-se. Manter-se vivo no tempo em que está imerso. Pois é exatamente o que ando fazendo agora, quando procuro, dentro do possível, agarrar os meus neurônios que tentam escapulir enquanto lubrifico as articulações das pernas e dos braços que começam a enferrujar. Iniciei o tratamento com hidroginástica, que abandonei, porque não gosto de piscina, onde a sujeira coletiva se mistura. Troquei pela sala de ginástica de solo que a Associação dos Funcionários Públicos mantém em Campinas. A AFPESP é a maior entidade de classe da América do Sul. Com 232 mil associados, tem 12 Urls – Unidades Recreativas e Lazer -  e 13 delegacias de atendimento  de pessoas distribuídas pelo estado. A de Campinas serve de modelo. A sala de musculação é freqüentada, na maioria, por antigos funcionários que já deixaram o serviço público, há muitos anos. Velhinhos sem bengala. Geralmente professoras, criaturas que deram o melhor de si em favor  da infância e da juventude. É aí  que começa a ironia. Na sala de musculação, os alunos são encanecidos docentes de ontem que procuram evoluir para não enferrujar, ao passo que o mestre, aquele que ensina a técnica da desferrugem, é quase um garoto. Todavia, competente e entusiasta. Descubro-o diligente a orientar pacientemente os que passaram a vida ensinando o b-a-bá a gerações. Vendo-o na tarefa árdua, lembrei-me de uns versos antigos que escrevi outrora, mas  me falam à existência atual :

 

                              Ontem, atravessando as ruas,

                              o pai levava pelas mãos o filho,

                              ensinando caminhos novos,

                              na paisagem antiga.

                              Hoje, o moço leva pelas mãos o pai

                              para que não tropece

                              em seus próprios passos,

                              olhando na paisagem nova

                              o caminho antigo.

 

           O moço conhece bem o seu ofício. Sabe conduzir as  coisas. Com carinho e afeto, leva  os que já não mais são jovens a sorrir ante a paisagem nova. Compreende, acessível, que  a academia de ginástica não é um refúgio de vencidos, mas um oásis, sopro de vida para criaturas que, como o poeta, ainda podem dizer: - “Junto do arco da estrada chegamos. Marchemos!”. Marchemos, enquanto a luz do dia  ainda brilha; marchemos mesmo que seja por um só minuto. Um só instante apenas, pouco importa, porque sempre  teremos, em matéria ou espírito, um amanhã diante de nós.

 

 

(Publicado no “Correio Popular”, em 30 de outubro de 2008).

(Imagem: Os arcos de Vinhedo - SP)