Mel, divisórias e São Bernardo

De uma forma bem simples, sem maiores entraves ao bom entendimento, a coisa funciona mais ou menos assim: há um teclado preto, um monitor, alguns papéis, um aparelho telefônico já ultrapassado, e uma vista direta à divisória. Bege. Com detalhes em cinza, do tipo mais barato, ordinário; e uma vista lateral que alcança uma ráfia já meio murcha e um armário sem valor econômico e sentimental, cuja função é esconder mais papéis que, provavelmente, jamais serão lidos novamente.

Voltemos à divisória. Feia. Insossa. Fundamental. Não por suas propriedades óbvias. Disso qualquer tapume ou parede de alvenaria daria conta. A divisória é um paradoxo social. Blinda os olhos e libera, escancara, os ouvidos.

Tenho fetiche por divisórias. Elas te permitem ouvir além do enxergar. E isso não é pouco.

O convívio social é debochado, egoísta e, acima de tudo, eivado do início ao fim de falsidade. Numa conversa, por exemplo. Por mais admiração, quiçá subserviência ao interlocutor, há sempre o momento do olhar desviado, do foco alterado, da mente inquieta, que indaga sofregamente o motivo daquela piscadela esquisita, da tosse seca, do pedinte que se aproxima no meio da rua, da insegurança de uma remela recém descoberta. E se sobrou um pedacinho de alface em um dos dentes? E o hálito?

Não há cérebro humano capaz de se entregar inteiramente a uma conversa franca com seu interlocutor frente a frente. É sempre, invariavelmente, uma batalha na qual os modos devem sobrepujar os medos. Há uma perda considerável de informação. Não há garantias de que a mensagem foi transmitida com sua integridade mantida. Não como presumo ser uma conversa ideal.

Também os escritos são de irritar. Dúvida não há de que o receptor pode ler todo o texto confortavelmente, na tranquilidade de sua intimidade, abusando, se assim o desejar, dos maus modos, da flatulência esportiva, do escárnio generoso dos momentos solitários.

Não o escritor. Esse, por mais hábil, por mais brilhante, falta com a verdade da ausência de espontaneidade. Lê, relê, apaga, muda a formatação da frase. Namora com a beleza e com a necessidade de ter seu texto reconhecido como algo positivo. Não há exceções. Ainda que seja apontada alguma.

Meus caros, uma conversa sem espontaneidade é uma farsa. A mensagem transmitida vem do ego. Ainda que faça todo o sentido e receba uma dúzia de elogios eloqüentes. Ego é ego, conversa é conversa e pureza é pureza.

Falo da divisória da minha sala porque nela descobri a única fonte palpável de uma comunicação em seu estado bruto. Naturalmente deliciosa, como se fosse, perdoe-me a óbvia analogia, a nascente de água boa. Minha divisória é a Perrier da conversa verdadeira.

E eu explico: verdadeira porque a divisória esconde a conversa entre dois egos que se digladiam abaixo de Nero, ou, cá em Pindorama, atrás dela mesma, divisória. Passo a ser, então, historiador analisando a Guerra do Peloponeso e a chegada de Jesus a Jericó. Fácil como tirar doce da mão de criança, alguns milhares de anos depois.

Eles falam de tudo.

Eles, o ajuste no texto é necessário, são o setor financeiro de um escritório de advocacia. Quatro pessoas. Todos homens.

Mentem compulsivamente na mesma medida em que acreditam nas coisas mais inverossímeis possíveis que fazem reverberar além das divisórias. O mais gratificante de tudo para mim, com meu pequeno cantil em mãos, é fazer absoluta questão de não conhecê-los, o que, dada a geografia do local é improvável, mas, acreditem, absolutamente possível.

Para mim, as verdades chegam jorrando. Haja cantil.

Outro dia, um deles, o mais pernóstico, jurava que seu cão, um São Bernardo de 3 anos, havia pulado o muro de “quase dois metros” e cruzado com uma vira-latas em frente a uma delicatessen, diante do ponto de ônibus da rua principal do bairro onde mora, Guilherme da Silveira.

Senhores, dificilmente haverá tanta inverossimilhança em uma mentira como essa singeleza aí de cima. Então quer dizer que um cachorro pulou o muro de dois metros, comeu uma vira-latas e tudo isso defronte a uma delicatessen em Bangu, eufemismo para Guilherme da Silveira?

E mais: ninguém do Guinness foi avisado? Quem é o dono da delicatessen? Algum excêntrico, um nazista exilado? Será que vende arenque? Trufas? E que tipo de gente cria um São Bernardo em Bangu?

- Meu Deus! Chemem o síndico! Mobilizem-se! Façam algo!

Seu interlocutor, as divisórias não mentem, limitou-se a perguntar sobre os filhotes. – “Como nasceram os filhotes”.

- Mortos, pensei. Nasceram mortos, ora.

Teve o da dieta também. Entrara num regime violento. Era Vascaíno. Um amigo de rua havia perdido dez quilos em duas semanas se alimentando basicamente de...

De mel (?!?).

O mel, segundo ele, se consumido com freqüência draconiana e doses cavalares, purifica as veias (!?) e sintetiza a gordura, ajudando na aceleração do metabolismo, sendo – para dar um toque coerente no gran finale – expelido pelas fezes.

- Ah. Bom.

Ninguém humilhou o sujeito. Ninguém o tirou a alma, como era de bom alvitre para a ocasião. Ninguém, quero crer, acreditou. O que é, em todas as análises possíveis, o “pior dos mundos”.

Minha tese prosperou. A comunicação direta é uma falácia. O olhar, ainda que o olhar de um idiota, repele. Ou aproxima demais. A comunicação direta é invariavelmente viciada. Fundamental, porém.

Álcool, drogas, sexo. Esse tipo cretino de comunicação é um catalisador de más energias. Tem o mesmo princípio humano que tem esse arrastar de pernas e corpos lentos pelas superfícies tortuosas do orbe. A mesma essência rudimentar que nos leva diariamente a excretar resíduos de toda espécie.

É duro sim. Opte pelo mel, se preferir.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 12/11/2008
Código do texto: T1279727
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