"Reparando Uma Injustiça" =Crônica sobre felinas=

Tenho cometido uma injustiça contra minhas gatas e acho que elas estão sentidas com isso. Não dizem nada, mas percebo que ultimamente têm me olhado de esguelha, com jeito de que não querem papo comigo. Chego até onde elas estão, dormindo ou comendo, e logo fico sozinho. Cada uma escolhe um canto e se recolhe. Não me pedem mais carinho. Miam apenas pedindo comida ou que eu abra a torneira da pia do banheiro para a água de toda hora. Sem papo. Curtas e grossas.

Parei para pensar e cheguei à conclusão de que elas têm seus motivos sérios. Já fiz algumas crônicas, poucas, creio, sobre minhas cadelas e o Bill, o baixinho invocado, e quase nunca me refiro às felinas. Está na hora de corrigir a injustiça.

A Nina, a mais velha das três, eu conheci quando pesava menos de trezentos gramas e surgiu à porta da então minha lanchonete na USP. Estropiada, fraquinha, com umas poucas semanas de vida e muito doentinha. Encontrei-a dentro do balcão de vidro, enroscada entre algumas caixas de doces ainda fechadas. Assim que encerrado o expediente, levei-a para uma consulta ao veterinário. O tratamento foi duro para ela: quinze dias de injeções em suas magras coxinhas. Tive que aprender a aplicar injeções sem sentir dor e aprendi nela.

Alguns dias depois, assim que o tratamento chegou ao fim, ela já era outra. Corria feliz da vida pra todo lado, pulava feito uma mola a qualquer susto mínimo, escalava todos os obstáculos e só reclamava quando eu a tirava de meu lugar fixo no sofá da sala. Era esbelta, saudável, de boa paz, e logo se tornou, se não amiga, pelo menos conhecida quase íntima de minha cachorrada de sempre.

Hoje em dia é uma senhora gorda pra valer, como se estivesse sempre grávida de uma ninhada de quinze ou vinte, e passa o dia fazendo o que mais gosta: nada. Nada a não ser comer e dormir. Nunca nos deu trabalho fugindo de casa e voltando altas horas ou dias depois. Já está com uns dez anos mais ou menos a Nina Gouveia.

Alguns anos depois uma vizinha chamou-me quando eu passava pela rua:

- Seu Fernando, o senhor, que gosta de bichos, não quer levar pra casa essa coisa linda aqui? – e mostrou-me uma linda misturinha de siamês com vira-latas.

Claro que aceitei no ato, apesar da censura que ouviria minutos depois:

- Outro bicho, amor? Mais um pra eu cuidar?

- Se você não quiser, meu bem, a gente arranja alguém que queira ficar com ela...

Disse isso com o coração apertado e sem a mínima vontade de dar a Puppy para quem quer que fosse.

Como deu trabalho em São Paulo essa safada...Saía de casa e só voltava altas horas, sumiu algumas vezes por dois ou três dias, envolvia-se em brigas que acordavam a vizinhança, voltava para casa lanhada e mancando, e era sempre recebido por minha mulher da mesma forma:

- Porque é que você faz isso, Puppy? Aqui você tem casa, comida, carinho, roupa lavada...O que mais você quer, menina? Meu medo é que você acabe se envolvendo com drogas ou gatos maus elementos...

As brincadeiras eram de puro alívio, já que a malandra se tornou paixão de minha mulher. Pouca gente acreditará, mas cansei de ver as duas batendo longos papos. A cada frase dita, alguns ou muitos miados em resposta.

Marrom e branca, mais branca que marrom, é linda demais essa porqueira geniosa.

Exigente, brava, decidida, desce o cacete nos cachorros da casa quando a aborrecem. E só toma água na pia do banheiro com o fio correndo na medida certa. Aceita e gosta de carinho, mas se houver exagero não faz cerimônia em dar uma mordida de advertência na mão que a acaricia. Nome todo da peça: Puppy Tereza.

A Lady é a caçula. Caçula já viu como é...Mimada, paparicada, adora brincar com qualquer coisa que se mova à frente dela, mas o que gosta mesmo é de tentar o Bill, dar mole pra ele e depois tirar da reta. Aceita a paquera, mas só pra atazanar o pobre virgem que não sabe que gato é gato, cão é cão, e que ela não se mistura com qualquer um. Ele que trace as almofadas...

Muitas vezes, quando estou escrevendo, ela resolve que o melhor lugar para sentar-se e fazer a higiene, passando a língua por todo o corpo, é o teclado. Pula pra cima dele, fica me encarando fixamente e só falta dizer:

- Pô, meu!! Vai ou não vai me deixar aqui sossegada? Não vê que eu quero me dar um trato?

Claro que tenho que tirá-la de seu conforto em cima das teclas, mas quando dou moleza minha canetas e lápis aparecem no chão e tenho muita sorte quando os encontro antes do Bill, mastigador emérito de tudo que é utensílio de escrita.

Quando chegam visitas as três somem e fica difícil achá-las. Depois de algum tempo a Lady aparece, examina as pessoas presentes, nada discretamente, volta para onde estava e as três reaparecem na sala, escolhem seus lugares e vigiam todo mundo. Tenho certeza de que a Lady é sempre escalada para examinar o ambiente antes que elas se resolvam a dar o ar da graça. Lady Cristina, a embaixadora.

Coisa boa uma casa com vários bichos...Ainda mais quando a gente está naquela altura da vida em que todos os filhos já se casaram, formaram suas famílias, levam suas vidas, e a casa da gente só se enche de novo ocasionalmente. É assim que eu gosto.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 18/11/2008
Reeditado em 21/11/2008
Código do texto: T1289297
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